O Coronavid-19, o confinamento e os efeitos colaterais
A luz radiosa do fim de tarde de uma primavera tão esperada, mais do que isto, desejada, não, mais ainda, ansiada, após os mais terríveis e traumáticos 100 dias de outono e de inverno que os países do Hemisfério Sul conheceram, os três amigos, figuras proeminentes e conhecidas na sua comunidade, reuniram-se para o tão esperado “répiau” à mesa do Quiosque do Vai-Vai, o mais concorrido da Orla Moacyr Scliar. De diferentes profissões: o primeiro, demorado Incorporador nas entregas da Construção Civil, o segundo hábil Contador na maquiagem das declarações do Imposto de Renda de seus clientes, e o último, o típico político zombeteiro e cínico que há seis legislaturas repetia as mesmas promessas jamais cumpridas. Em comum, a iminente ação de divórcio litigioso que as respectivas esposas estiveram por ingressar.
Ávidos pelas novidades queriam saber o que acontecera a cada um naqueles tenebrosos dias. O Incorporador foi o primeiro a se revelar:
Durante a “prisão domiciliar” eu vivia com os fones do celular nos ouvidos e cantarolando músicas tipo “…Já não acredito se você chora dizendo me amar / Eu sei que na verdade carinhos você quer ganhar…”, ou “…nunca se esqueça que eu tenho o amor maior do mundo, / Como é grande o meu amor…”, e mais esta “…Você é o meu amorzinho / Você é o meu amorzão / Você é um tijolinho / Que faltava na minha construção…”. Minha mulher, ouvindo isso, me perguntou, Você está com saudades das obras? Sorri, meio que forçado, e informei-lhe que estava “sintonizado” na Rádio Web Amor Incondicional, do Rio de Janeiro, só com músicas dos anos sessenta. Acontece que nenhum ser humano vai para o chuveiro com o celular na mão. Foi aí que ela também resolveu “ouvir” a Rádio. Pra quê? Descobriu que minha cantoria não passava de código pelo áudio para “conversar” com a “namorada”!
O Contador limpou o suor da testa e arguiu que a história dele fora pior. Após um suspiro ele confessou:
Eu me valia da confidencialidade da Dona Alba, a modista, vocês a conhecem? Vez que outro eu encomendava um belo vestido e ela mandava entregar na casa da minha “namoradinha”. O ruim nesta história, é que nós três somos todos conhecidos aqui na comunidade. Pois bem, Dona Alba, distraída, não se dera conta de que havia contratado uma nova ajudante e, entregando-lhe um cartão, disse à auxiliar que aquela era uma encomenda especial do Dr. Contador. Terminado o serviço, a costureirinha embrulhou o vestido, prendeu o cartão no pacote e o entregou lá em casa. Minha mulher leu o cartão que dizia, “Quando esta quarentena acabar, me espere com este vestido. Como Deus Mercúrio* irei arrancá-lo num só puxão do seu do seu corpo de deusa romana”.
O Político emitiu uma longa gargalhada pirata e, após recuperar o fôlego relatou:
Como vocês também fiquei de saco cheio com a dualidade do Mito/Bozo. Afinal, podia-se sair às ruas ou não? Era mesmo, segundo a cabeça dele, uma “gripezinha, um resfriadinho” ou, como diria “aquele” outro, só uma “marolinha”? Como não sei fazer absolutamente nada, depois de três semanas confinado em casa, dei uma fugida até a loja de franquia e adquiri um batom, o mesmo usado pela minha “amiga”. Apanhei uma cueca e nela desenhei – ah, nisso eu sou um expert! – lábios iguaizinhos ao dela. Empunhei o meu “troféu” íntimo e o mostrei à minha mulher dizendo-lhe, Eu não te falei que “essas coisas” sempre vêm do nada?”. Sorte a minha que ela não estava passando as roupas. Agora faço o seguinte, não uso mais cuecas!
As gargalhadas bucaneiras dos três chamaram a atenção das mesas vizinhas. O Incorporador perguntou, Qual era a marca do batom da tua namoradinha? Sem muito esforço o Político respondeu, Le Rouge Givenchy. Já o Contador quis saber, Tem algum problema em nos dizer o nome dela? O Político, como era do seu feitio respondeu ainda mais debochado, Não, claro que não! Carmen, Carminha, Carmencita…
Os três, ao mesmo tempo, ergueram-se e se olharam furiosamente.
Antes mesmo do anoitecer, o proprietário do Quiosque do Vai-Vai, após a saída das cinco viaturas policiais que acorreram ao local, contabilizava os prejuízos do quebra-quebra…
*Marcúrio – deus da Mitologia Romana dos viajantes, dos ladrões e do comércio.