Colunistas

O corpo de Gioconda

Naquela noite Aleph não dormiu. Os olhos enfarados da noite, que ficaram parados, horas e horas, olhando, sem ver as brasas vermelhas do… as brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes. Sons longínquos de uma madrugada que se anunciava como interminável invadiram o quarto. A cabeça dera voltas sobre o travesseiro na busca desesperada do sono e, quem sabe, do esquecimento do trágico episódio dos últimos dias. No meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar; era o quero-quero ativo, que não dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo que devia vir e que tardava tanto já…

Os lençóis amarfanhados jaziam sobre o carpete. O louco desejo de sentir braços, pernas e boca a envolver braços, pernas e boca de um outro corpo – o corpo de…… – num só corpo, diluiu-se como a bruma diáfana se deixa corromper pela luz esmaecida do amanhecer e revela Aleph, agora errante pelas ruas da cidade ainda dormente. Uma nuvem densa e baixa envolve os caminhos, os prédios, os automóveis, as praças, os jardins, os monumentos e os últimos bêbedos regurgitados pelos botequins. Na vitrina vazia, o manequim de mulher: nu, o bico róseo mutilado dos seios túrgidos deixa transparecer uma resina coagulada (o sangue dos títeres?); o braço decepado e o olho vazado. Estilhaços de vidro. O som roufenho do gramofone na casa de carnes: Cauby Peixoto, desvairado, entoava um tango (des)conhecido, Balada para un Loco.

A ex-socialite, em andrajos, cata farelos de rosquinha de broa entre as cadeiras de um cinema em ruínas. Na pequena praça: o circo a céu aberto; no picadeiro, o rabino – a barba ainda gordurosa e com vestígios do carré de porco da noite anterior – conta anedotas sobre Torquemada e as fogueiras da Inquisição. Nas arquibancadas, leões circunspetos ouvem o semita, desdenhando os rugidos da anã numa jaula próxima. Sob a mandala, o palhaço parte um cálice de cristal de e esparge azeite dendê no casal de pretos-velhos ajoelhado à sua frente.

Gigantescos nacos de rosbife enfeitam a cabina telefônica. Vindo dos lados da Catedral, o homem incrédulo, histriônico, chapéu desabado, tenta varar a nuvem abissal a bordo do aeroplano cuneiforme. A antiga boneca de louça, o olhar mortiço, equilibra-se nos carris da estrada de ferro desativada, murmurando, em tom plangente, “…tudo está vermelho. Hoje tudo é vermelho… E agora, mamãe?…”. Casais, em sodomia, gemem, lascivos, nas sacadas do sobrado da caftina Gilda M. Aleph tem, então, a certeza de escutar, vindo do interior dos postes de iluminação, o riso demoníaco de Lúcifer.

No foyer do Theatro, o Menino chora pela Incompreensão. Um castelo nos pampas é envolto por perversas línguas de fogo. Em sua fuga, Aleph invade templos, terreiras e sinagogas, dispara dos porões pútridos dos quartéis, transpõe as trincheiras, ignora as granadas e os obuses, rompe o cerco do pelotão-de-choque, atravessa os manicômios e as morgues e, no cimo da montanha, de onde mira por vez primeira a cidade a seus pés alcança o arrampadouro de asas-delta. Enceta a corrida; em meio à plataforma, fecha os olhos e, naquele turbilhão, permite-se mansamente planar no vazio do incompreensível, diretamente para as profundezas de um inusitado oceano.

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