O eterno recomeço
Chegamos ao final de mais um ano cristão. Haverá espocar de foguetes durante todo o dia 31 de dezembro e a queima dos fogos de artifícios que certamente hão de encantar nossos olhos ao cruzarmos a meia-noite. Muitos, evidentemente, começarão a “encher a cara” desde as primeiras horas da manhã de segunda-feira, senão antes, tudo em nome da alegria que a grande festa que se avizinha enseja.
Alguém, no entanto, já se pôs a refletir sobre a razão do foguetório, da felicidade que transborda, da música tocada a todo volume nas casas, nas calçadas e nas praças? Eu pergunto, por qual a razão, verdadeiramente? Pelo novo ano que está preste a se iniciar, me dirão de imediato.
Não, amigos! Não é pela ilusão de que no próximo ano tudo há de mudar para melhor. Os juros do mercado continuarão a subir, o cartão de crédito e o cheque especial atingirão a estratosfera. Os banqueiros terão mais razões para suas comemorações. A indústria nacional sentirá uma vez mais a interferência da poderosa infiltração chinesa e dos piratas. A violência urbana não se extinguirá dos noticiários. Os políticos e o compadrio também corruptos permanecerão corruptos e o rodízio de pizza será farto e interminável.
Espocamos os foguetes, lançamos fogos de artifícios, nos emborrachamos e, pateticamente, dançamos ao som da música das duplas sertanejas ante a evidência de que este ano está dando os seus últimos suspiros. Brindamos, sim, pela constatação de que, dentro de alguns instantes, ele será uma página definitivamente virada. Queremos, não! Desejamos, não apenas isto! Ansiamos, sim, e ardentemente ver o ano velho pelas costas.
E não será apenas neste dia 31 de dezembro de 2007. Não serão noutros sábados, domingos ou segundas-feiras. Tampouco será tão-somente no próximo 31 de dezembro. Sísifo, um salteador, foi condenado pelos deuses a incessantemente rolar uma rocha até o topo de uma montanha, de onde a pedra cairia de volta devido ao seu próprio peso. Os deuses pensaram, e com alguma razão, que não há punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Porém, Sísifo, tenazmente, desce a montanha até o sopé, retoma a pedra e torna a rolá-la de volta ao topo. Tal como Sísifo carregamos por uma vida inteira o compromisso do eterno recomeço.
Ao encontro dos ponteiros na meia-noite de cada 31 de dezembro celebramos a conquista do topo onde colocamos a pedra que individualmente nos foi dada carregar. E, ali, festejaremos e brindaremos nossa vitória sobre as feridas abertas em nossos corpos, as mãos dessangradas, as lágrimas vertidas, os cansaços de cada jornada, as dores e os sofreres que a subida nos causou.
Explodiremos fogos de artifícios e foguetes. Brindaremos com o generoso champanha ou com a mais singela e pura cachaça. Dançaremos ao som do pagode, dos sertanejos ou, até mesmo, de uma doce e melodiosa valsa vienense. Festejaremos, sim, o fato de que nós, verdadeiros e humanos Sísifos, em que pese sabermos que a pedra, uma vez mais, rolará montanha abaixo, teremos a eterna capacidade de descer e começar tudo outra vez.