O Murinho
Breno Allem Wiethölter,
Everton Renato Fuão Juliano,
José Luiz Cunha Rangel Pinto e
Paulo Hammes Dable
Após a Praça Júlio de Castilhos, iniciava-se a Rua 24 de Outubro, com os seus cinamomos que emprestavam sombras nos dias quentes de verão e regalavam com seus frutos a munição perfeita aos bodoques da gurizada. Logo em seguida, à esquerda, a Rua Jardim Cristofel. Pequena e sem saída, na sua entrada possuía um guapuruvu de imenso porte, tronco reto abrindo a copa bem no alto, e ficava coberto de flores amarelas no início da Primavera.
Adiante, a Caixa D’água, cuja construção se iniciara em 1904 e fora concluída somente vinte e quatro anos depois pelo prefeito Alberto Bins, que também morou próximo à Praça Júlio, num imenso e belo casarão, na Vila Jardim Cristofel, hoje demolido, dando lugar ao Edifício Cristofel. Diziam que os jardins da Caixa D’água foram inspirados nos do Palácio de Versailles. Mais adiante, vislumbrava-se o velho Prado dos Moinhos de Vento, que deixou de existir no final dos anos cinquenta e onde hoje fica o “Parcão”.
Na 24 de outubro, perto da Praça Júlio, ainda há um murinho, feito de granito rosa, que era ponto de reunião da turma dos anos sessenta/setenta. O pessoal ficava ali sentado ou no seu entorno, não raro, por tardes e noites inteiras. Era local do padecer dos moradores e por quem circulasse pela rua, pois quando o grupo se reunia naquela pedra fria fazia furor. Caçoavam, algumas vezes beirando o desrespeito, da paciência dos que por ali transitassem e lançavam, incólumes, sem qualquer pejo, gracinhas às adolescentes que ingenuamente ousassem cruzar pelo grupo.
Apenas uma menina, ginasiana, que morava a poucos metros da Praça, na 24 de Outubro era intocável, fazendo jus ao adágio de que “toda a donzela tem um pai que é uma fera”. E o pai da moça, coronel ligado à ditadura, era mesmo bem exasperado. Mas isso não impedia que ela seguisse pela rua com um suave e provocativo balanço dos quadris. Às vezes passava na calçada oposta ao grupo, com seu ar sedutor, cabelos longos e castanhos — quase uma seda — que refletiam, nas tardes claras, as nuanças da luz do sol. Vestia o uniforme do Colégio Bom Conselho.
A saia curta acima do joelho, deixava à mostra a sensualidade das coxas perfeitamente delineadas, levando a todos ao delírio. Era o enlevo da turma; por consenso, a diva da rua.
Sua passagem era aguardada com ansiedade. De repente, saía de casa ou voltava do colégio. Logo alguém apontava: — “Lá vem a gostosa!”. Outros, mais conscientes de que para eles a musa não ligava, prosaicamente, desdenhavam: — “Lá vem a “galinha”!”. Era o bastante, contudo, para que o pessoal parasse, pasmado com o fascínio sensual que ela provocava. Os olhares, sequiosos, ficavam a segui-la, num silêncio quase sepulcral.
A musa sabia que os encantava; discretamente, retribuía olhares esperançosos à hoste do murinho. Para quem dirigiria o seu olhar? Houve até quem, mais presunçoso, certo de que cresceria aos olhos da ninfa, consumindo integralmente a encolhida mesada, para ela enviou um buquê de flores. E — se soube depois — os olhares eram dirigidos para o afortunado Artur…
Ela foi o devaneio, musa platônica que povoou as fantasias e os desejos ardentes dos concupiscentes rapazes do murinho, mas lânguidos diante de tanta sensualidade.
* * *
O Murinho ficava na frente do “Açougue Santa Lúcia”, do calabrês Antônio Maroni, que a todos chamava de “Amiguinho”, adjetivação que lhe voltou na forma de apelido. No local do açougue, na década de 50, funcionara o Bar Ranchinho.
Volta e meia alguém da turma convocava o Pé-no-Chão, lavador carros da Praça Júlio, analfabeto, dando-lhe um trocado:
— Vai ao açougue e compra dois quilos de Modess; mas bem vermelho!
Ingênuo, cumpria a missão. Voltava de mãos vazias:
— O Amiguinho disse que só vai receber no fim da tarde…
* * *
Certo sábado, quando a turma se encontrava reunida junto ao Murinho, viu-se surpreendida pela manobra imprudente do Cláudio Brandt, dirigindo seu “fusquinha“ sobre a calçada por bons metros, freando tão bruscamente quando chegara à frente do grupo.
Rápido, desceu do carro. Voltando-se ao condutor de um outro veículo, que também havia parado, junto ao meio-fio, Brandt, com gesto ríspido, ar intrépido, confiando que a quantidade de parceiros intimidasse o algoz, passou a provocá-lo:
— Agora vem, filho da p…!
Os amigos não compreenderam a afronta de Brandt, que sempre demonstrara moderação, avesso a confusões.
Este completou, dirigindo-se aos amigos:
— Esse corno me ameaçou no trânsito e me fechou; quase bato numa árvore. Agora vem, vem!…
O desafeto de Cláudio Brandt, de dentro do seu carro, se limitava apenas a observar o comportamento descontrolado do ofensor e a reação do grupo. Procurando contornar a situação belicosa, Terra Costa abordou o homem e, apaziguador, buscou o diálogo:
— Meu senhor, não há motivo para brigar…
A resposta do homem foi imediata e surpreendente. Sem nada falar, desceu do automóvel empunhando um revolver 38, cano longo, niquelado e reluzente. Pudera, a arma resumia-lhe o ânimo. Diante da reação inesperada do desconhecido, o primeiro a fugir foi, justamente, quem a tudo dera causa, deixando para trás os amigos e o carro sobre a calçada, aberto, chave no arranque, à mercê do abandono, para refugiar-se no hall do edifício Santo Ignácio. A ação do restante do grupo não foi diferente: cada qual para um lado e a seu modo, num “salve-se-quem-puder”, livrando-se do ameaçador revólver.
O homem armado, como se previsse àquela reação do grupo, calmamente entrou no seu automóvel, deu partida seguindo o seu rumo.
Zé Pinto resumiu o ocorrido:
— Depois do Taurus 38, acabou o machão.