O ocaso da última das estrelas - Sergio Agra - Litoralmania ®
Sergio Agra
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O ocaso da última das estrelas – Sergio Agra

Passa da meia-noite quando entro no apartamento. Como de hábito, o bilhete deixado por Pandora se encontra no lugar de sempre: sobre o console da sala de estar. No home bar apanho um cálice e a garrafa de um generoso merlot de boa safra. Abro-a. Enquanto o vinho ‘respira’ deposito sobre o prato circular do aparelho de som um long playde vinil, preciosidades antigas que guardo com desvelo, com baladas e músicas românticas gravadas por Elvis Presley. Após, firmando a haste do cálice entre os dedos médio, indicador e polegar efetuo um leve movimento circular para sentir o aroma do vinho. Sorvo o primeiro gole. Sento na frente da escrivaninha e separo algumas folhas do bloco de cartas. Ao iniciar a escrita os primeiros versos da melodia em surdina se irradiam pela sala.

Andnowtheendisnear(E agora o fim está próximo) I face the final curtain(Assim eu enfrento a cortina final) Myfriend, I’llsay it clea(Minha amiga, eu direi isto claramente) I’llstatemy case ofwhichI’mcertain(Eu declararei meu caso do qual eu estou certo) I’velived a lifethat’sfull(Eu vivi uma vida que está cheia) I’vetraveledeachandeveryhighway(Eu viajei cada e toda estrada) And more, much more thanthis(E mais, muito mais que isto) I did it myway… (Eu fiz do meu jeito)…

“Pandora.

Daqui a poucas horas virá o amanhecer. Faz frio… Muito frio… Ontem, durante o dia todo, fez um inusitado calor fora de época; por isso a chuva torrencial que cai desde o começo desta noite. O apartamento — apesar da mobília, das paredes revestidas com as molduras dos quadros com as bandeirinhas das festas de São João, de Alfredo Volpi, e com os ex-votos, de Antonio Maya, das estantes repletas de livros — me parece inteiramente despido. Há um vento gemente que penetra pelas frestas das janelas se sobrepondo ao ruído dos automóveis que viajam nas ruas. Tudo isso me deprime. Para atenuar as tristezas abri um tinto e pus um disco com os blues e baladas do Elvis. Percebo o antigo e imóvel carrilhão de parede: parado! Deve estar sem corda sei lá há quanto tempo. Cheguei faz pouco de Santherminia onde sepultei meu velho e amado pai. Numa vala à beira da estrada, antes de viajar no tempo idealizei o teu funeral.

O que em ti me atraiu foram o brilho e a dissimulada ternura que trazias no olhar, hoje mal delineados pelas incursões noturnas e pelas emanações de estranha e adocicada fumaça que te estendera o abissal ‘dragão’. Nós dois costumávamos ouvir uma peça de Tchaikovsky. Ante a harmoniosa suavidade dos noturnos e dos prelúdios transformei-me num andarilho. No silêncio das confidências aprendi a te amar. Permiti-me anular em nome de tudo que só te dissesse respeito. Renunciei ao convívio com os amigos e das rodas de chope nos finais das tardes de sexta-feira. Eu cobiçava tão somente mergulhar no teu corpo, no teu sexo de fêmea nova e assustada; ser um náufrago na fúria incontida dos teus oceanos; ser o sobrevivente acolhido pelas nas areias de uma ilha deserta, longe de qualquer possibilidade de socorro.

Regrets, I’vehad a few(Arrependimentos, eu tive um pouco) Butthenagain, too fewtomention(Mas, novamente, muito poucos demais para mencionar) I didwhat I hadto do (Fiz o que tinha de fazer) Andsaw it throughwithoutexception(E fui até o fim, sem exceção) I plannedeachchartedcourse(Planejei cada curso projetado) Eachcarefulstepalongthebyway(Cada passo cuidadoso do percurso) Oh, and more, much more thanthis(Oh, e mais, muito mais que isso) I did it myway (Eu fiz do meu jeito.)…

 Pudera desbravar teus mares tão profundos, sugá-los com todos os seres que neles habitam e explodir numa outra dimensão, marchetando o Universo de peixes, cavalos-marinhos, sereias e estrelas-do-mar.

Ouço a balada que agora elegi como o meu hino de libertação. Bebo o vinho sem qualquer pressa. Só. Sem tua presença, como de hábito. Ergo o cálice e faço um brinde à solene descida de tua morte.

À noite o cansaço e a frustração de saber sucumbidos os esforços de publicar um pequeno romance me derruíam.  Mesmo assim eu executava um fantástico solo de violino para uma espectadora fria, distante e impassível, quando poderias ser o calor, o êxtase e a vibração de toda uma plateia. Ofertei-te Mozart, Chopin, Beethoven, Mendelssohn, Debussy. Preferiste o ‘bate-estaca’ das danceterias onde rolava e consumia-se a ‘farinha mágica’. Brindei-te com champanhas. Curtias o ‘fogo paulista’. Presenteei-te com orquídeas e violetas. Encantaram-te, no entanto, as mentiras e o velhaco assovio do conquistador de beira de calçada. Enfeitei-te com rendas e sedas. Barganhava-as por chitas ofertadas nos balaios dos camelôs. Entreguei-me e te amei com as nuanças e as sutilezas de um Eros. Elegeste a trepada de um bacante irado e malcheiroso após a jornada nos cais das mentiras que estimulavas.

Yes, therewere times, I’msureyouknew(Sim, houve vezes, eu sei que você sabe) When I bit off more than I couldchew(Que abocanhei mais do que podia mastigar) Butthrough it allwhentherewasdoubt(Mas apesar de tudo quando havia dúvida) I ate it upandspit it out (Enfrentei tudo e me mantive no alto) I faced it alland I stood tal (Eu enguli e cuspia) Anddid it myway(E fiz do meu jeito)…

O ideal teria sido encontrar o denominador comum, saborear uma lasanha, degustar um chope dourado e espumoso, calçar os tênis, vestir as calças jeans, escutar Chico, Nascimento, Caetano, Elis, Bethania, Simone. Ser, não um violino tenso, mas a flauta doce que expurgasse todas as frustrações, a melodia que eliminasse a distância entre aquele instrumento solitário e uma plateia já não mais tão empedernida e surda e executasse não uma sinfonia, simplesmente uma canção. O vinhome inebria e seduz… és fascinação…

Ouço o bater da chuva contra a vidraça. A borrasca fora das coisas mais incômodas no teu funeral. Anseio apenas que este aguaceiro não impeça que o tempo cimente e vede todas as possíveis fendas do teu túmulo.

Recordo os momentos em que fomos mais do que cúmplices. Cruzamos oceanos, escalamos montanhas, sentimos no rosto a brisa suave de um entardecer sobre a PontNeuf. Jogamos moedas nas fontes romanas e formulamos pedidos. Sonhamos e fizemos amor em espumantes banheiras e sobre a maciez dos leitos de penas de cisne num outono em Zurique.

I’veloved, I’velaughedandcried(Eu amei, eu ri e chorei) I’vehadmyfill, myshareoflosing(Tive minhas falhas, minha parte de derrotas) Andnow as tearssubside(E agora as lágrimas cessaram) I find it allsoamusingE acho tudo tão incrível)Tothink I didallthat(Pensar que fiz tudo isso) Andmay I say, not in a shyway(E talvez eu diga, não de uma maneira tímida) Oh, no, no not me (Oh, não, eu não) I did it myway(Eu fiz do meu jeito.)…

Nos últimos tempos a música que ouvias era outra, em dissonância com tudo o que sonhávamos. Trazes agora o corpo e a alma envenenados. Num ato falho chamaste por um nome que não o meu. Busquei nas promessas e nas velas consumidas, nos tarôs e nos búzios de ladinas mães-de-santo o sonho que há muito já acabara.

For whatis a man, whathashegot? (O que é um homem, o que ele tem?) Ifnothimself, thenhehasnaught(Se não for a si mesmo, então ele não tem) Tosaythewordshetrulyfeels(Que dizer as palavras que sente) Andnotthewordsofonewhokneels(E não as palavras de alguém que se ajoelha) The record shows I tooktheblows

(O registro mostra que eu suportei os golpes) Anddid it myway(E fiz do meu jeito) The record shows I tooktheblows(O registro mostra que tomei fôlego) Anddid it myway (E fiz do meu jeito) The record shows I tooktheblows(O registro mostra que tomei fôlego) Anddid it myway (E fiz do meu jeito)

Antes de viajar a Curitiba te convidei para jantarmos. Sugeri um vinho, o que nos descontraiu um pouco. Contemplamo-nos e sem que se fizesse necessário dizer entendemos que estávamos diante do irremediável.

Continuarei trabalhando, é claro! E o romance que sempre duvidaste possível algum dia há de estar sobre o papel. Assim, não terei medo de não estar bem e só. Não hei de permitir que os meus fantasmas se apoderem do espaço transparente e saudável que ainda me pertence e que as sombras me obscureçam. Vou me deitar na meia-luz do quarto imaginando minha última realidade: um dia vou morrer! E não terei nenhum remorso do bem não feito, do amor não dado. Meus sonhos ainda não se perderam.

Percebo as primeiras luzes do dia. Vou até a cozinha e preparo um café, como se tivesse dormido a noite inteira.

 Manhã de domingo, 6 de janeiro de…

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