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O tempo recontado – Sérgio Agra

O tempo recontado - Sérgio AgraO TEMPO RECONTADO – (Capítulo IV de Balada para um Andarilho) 

… carregado de nuvens plúmbeas, como se abaixassem… 

Passavam das dez horas da noite quando a barca o continente I atracou no pequeno cais de santherminia, sua penúltima parada. Freijosejoaquínabadía ali desembarcou. Não havia vivalma para desejar-lhe as boas-vindas. Somente francisco juruna, o “chicoda praia”, que se ocupava em amarrar os cordames das raras barcaças e chalanas a motor que por ali aportavam, encorajara-se a guardar vigília. Solícito, instruiu ao frade como chegar à igreja matriz.

Freijosejoaquín, um castelhano fulvo e espigado, guarnecido por óculos de grossas lentes, pertencia à austera ordem de são francisco. Molhado, tremendo de frio, ele imaginou que aquele fosse o prenúncio do que o aguardava na paróquia de santherminia, Não será por muito tempo—consolou-se —,é até o retorno de frei zacarias. Arrependido ante a insensatez do arrebatamento ele rogou perdão pela reflexão nada generosa; cobriu a cabeça com o capuchinho, ergueu a batina até os joelhos deixando transparecer os pés metidos em sandálias de couro e sem se importar com as poças d’água pôs-se a caminho do povoado.

Estranho lugar este!—ele deduziu ao iniciar o íngreme aclive até a rua sete de setembro.

Santhermínia, cravada à margem esquerda do rio ibirapuitã, antes de ser elevada a município era uma pequena aldeia pertencente aalegrete, da qual dista pouco menos de quinze quilômetros rumo ao norte. Os do lugar vivem hoje apenas de lembranças. A pouco e pouco essa gente perdeu seus referenciais e viu desfilar como num filme em câmara lenta seus próprios filhos, sua história e os seus últimos valores rumo a plagas mais longínquas.

O vilarejo, outrora promissor polo político e cultural, palco de sangrentas refregas da revolução de 1893, estancara no tempo, sobretudo após o histórico combate de uma nova revolução, a de 1923, mais exatamente no dia 19 de junho, na ponte do rio ibirapuitã, em alegrete. Honório lemes, guerrilheiro maragato, garantiu que havia vencido a batalha contra o grupo governista de flores da cunha. O “leão do caverá”, como era conhecido o maragato, se apoderara da entrada de alegrete. Flor da cunha, com o objetivo de desalojar o inimigo, ao disparar a cavalo em direção à ponte gritara a plenos pulmões, “Os que tiverem vergonha na cara, que me acompanhem!” Ao final de uma jornada inteira de troca de tiros honório lemes ordenou a seus homens, após, segundo ele, “ter dizimado o inimigo”, que recuassem, pois a debandada, além de estratégica, se dava em nome da prudência. Sabe-se que na realidade o “leão do caverá” fora o verdadeiro derrotado no episódio.

Os crimes passionais, como o cometido por maribetesantana brasil, ou de caráter político, como o de raimundogóes, e tantos outros causos que deixariam qualquer cristão de cabelo em pé, freijosejoaquín, anos mais tarde, evocaria em suas lembranças durante as pescarias domingueiras após dizer a missa.

Maribete, primogênita do médico homeopata do povoado, doutor godofredosantana, flagrara ederon brasil, seu marido, e francisjacobis, também conhecido como “loba solitária”, colunista social do semanário a voz doibirapuitã, nus e abraçados, completamente bêbados num catre imundo, aos fundos do depósito do bolicho do fagundes. Maribete fulminou o pederasta com um tiro entre as sobrancelhas. Quanto a ederon, de quem nunca mais se soube paradeiro, mal se refizera do porre, contam, foi visto em célere retirada pros lados de uruguaiana, alertado de que a mulher havia contratado os serviços de “nêgoeleutério”, fiel mandalete do doutor santana, para capar o marido fujão.

O homicídio cometido pelo estancieiro raimundogóes teve desenrolar mais trágico. Getulista de primeira hora, góes, em ocasiões anteriores, já se indispusera com alcidesfernández, presidente do diretório regional da união democrática nacional (udn)e defensor incondicional do discurso de carloslacerda. Nos salões iluminados para o baile das debutantes do clubcaixeiral, no brumoso setembro de 1954, a política nacional ainda se encontrava no caldeirão efervescente sob a pressão dos últimos acontecimentos. Fernández assim mesmo ousou afirmar com todas as letras e para quem quisesse ouvir,Getúlio de caudilho não tinha nada! Na hora da “cobra fumar”, borrou-se nas botas!Góes, de supetão, interrompeu a dança e deixou a atônita esposa no meio da pista sem entender o porquê do gesto abrupto do marido. Aos empurrões, góes afastou os pares que se interpunham entre ele e a mesa em que alcidesfernández e a família confraternizavam. O crooner  rasgava-se nos últimos versos de “por una cabeza” quando o tiro disparado da beretta de góes explodiu a têmpora direita de fernández, fazendo com que este ao tombar sobre o colo da filha maculasse o belíssimo vestido da debutante. Durante os cinco anos seguintes os santherminienses somente viram possível a realização daquele baile, então sonho maior de toda adolescente, porque o clube comercial dealegrete abrira para tanto as porta de seus salões.

No entanto, o que mais deixou frei josejoaquínimpressionado fora o misterioso caso de freijoãobalen, acontecido lá pelos idos de 1918, quando a gripe espanhola também havia grassado aquelas plagas. Frei balen, recém-chegado na paróquia, recebera a informação do acólito de que as festas de nossa senhora do rosário estavam próximas. Nessas ocasiões os negros das vilas ribeirinhas homenageavam a santa, partindo do arraial, junto às barrancas do ibirapuitã, entoando cantos em ioruba e dançando o quicumbim, até a igreja matriz. Era uma tradição de mais de cem anos. A procissão findava na praça, em frente ao átrio da igreja, onde eles aguardavam o término da missa solene. Os festeiros contavam com a participação do rei congo mestre zita, da rainha ginga sua mulher e do séquito dos reis formado pelos capitães da espada, do chefe e da vara dos dançantes, dos alferes da bandeira e dos tamboreiros, preservando através de cânticos, vestimentas e ritos os costumes dos seus antepassados que ainda no tempo da escravidão viam na devoção à santa uma esperança para a sua libertação. Portavam arranjos de flores que ao final das danças depositavam aos pés da imagem da nossa senhora do rosário no altar-mor.

Lívido, frei balen numa postura que não comungava com a linha apostolar de seus irmãos de ordem não deixara por menos, Negro na minha igreja não faz festa!Velho zita”, o rei do terreiro, ao saber da proibição limitou-se a profetizar,Santhermínia não há de ser mais a mesma…

Ao amanhecer do dia seguinte pesadas nuvens cobriram os céus e obrigaram os moradores a manter acesa a chama das lamparinas como se noite fosse. Vindo do rio, um vento mormacento invadiu em remoinhos todos os becos e ruas da aldeia, fazendo bater portas e janelas, arrebatando de cordas e cercas as roupas postas a secar nos quintais, erguendo as saias pregueadas das normalistas e lhes desmanchando o caprichoso penteado. Essa estranha ventania que provocara nas pessoas um agourento presságio de fim do mundo convergiu para o adro da igreja matriz e, tal redemoinho, ali se quedou até o anoitecer. O inusitado perdurou por sete dias, findo os quais frei joãobalen foi encontrado morto, totalmente despido, aos pés da imagem de nossa senhora do rosário.

A partir de então, na semana que antecede aos festejos dessa santa, a paisagem se transforma: o céu adquire uma tonalidade pardacenta, carregado de nuvens plúmbeas, como que se abaixassem, como que querendo afogar a terra, as luzes são acesas dentro das casas e o vento mormacento vindo do rio domina todos os recônditos do povoado e a praça da matriz, remoinhando, até o anoitecer, à porta do templo.

Naquela noite, porém, frei josejoaquín trazia os ossos enregelados. Hoje, nem o divino todo-poderoso empresta o guarda-chuva!— o frade resmungou.

Após a longa caminhada o religioso alcançou o alpendre da casa paroquial. Bateu a aldrava, esperou por alguns momentos e ouviu uma voz cautelosa de mulher  bem perto da porta a indagar, Quem é? Com a fala tremente de frio o recém-chegado anunciou, Sou frei josejoaquín, vim substituir frei zacarias. Ah, é o sinhô?—tranquilizou-se a mulher. A porta rangedora entreabriu-se e por ela despontou uma bugre pequena a sorrir, deixando à mostra a ausência dos dentes caninos, os cabelos da cor do anu, em salamaleques, Fasfavor, frei, tá todo mundo aflito pelo sinhô. Em vão o religioso tentou retirar a água que se alojara sobre o capuchinho, Não é o que parece, onde estão os viventes do lugar, dormem com as galinhas? A nativa não se abalou com a irritação do frade, Tão no auditório da escola normal. O sacerdote, mais serenado, pôs a mala sobre um banco de madeira, Alguma apresentação teatral? Como aluna que decorara a matéria para a prova a pequena mulher desfiou, É a despedida de dona brígida, a fessora tá deixanu a escola, vai se aposentá.

Frei josejoaquín examinou a sala em que se encontravam: era estreita, bem ordenada e limpa; os móveis recendiam óleo de peroba. Desfez-se dos óculos embaçados, Grande mestra, uma virtuosa na arte de ensinar, sem dúvida… O religioso recordava neste momento dona veridiana, a primeira professora, na escola elementar.

A professora veridianapimentel, devota do divino espírito santo, benemerente das festas religiosas, apiedara-se do franzino guri que durante alguns dias espiava dependurado sobre os altos muros da escola municipal da cidade de são borja os folguedos no período do recreio dos alunos daquele educandário. A docente catou da bolsa de couro cru que sempre carregava o caprichoso sanduíche forrado com queijo, mortadela e alface, cuidadosamente envolto por um guardanapo xadrez, e seguiu na direção de onde se encontrava empoleirado o moleque. Assustado, josejoaquín ameaçou debandar. Num chamamento a professora fez com que ele estancasse. Com delicadeza ela estendeu ao menino o embrulho. A princípio ele se mostrou melindrado. A voz cálida da mestra, a pouco e pouco, o deixou mais confiante. Ele examinou com cuidados a merenda ofertada; mordiscou-a para apurar se ela escondia algum ardil. Dona veridiana  foi condescendente com a atitude precavida de josejoaquín. A vida certamente ensinara ao pequeno a  desconfiar de tudo que se apresentasse sob o manto de demasiada generosidade. A professora indagou de josejoaquín sobre sua família, onde morava, se já sabia ler e se possuía amigos. Entre uma mordida e outra do inesperado maná ele contou que nascera em missiones, na fronteira da argentina com o paraguai. Não tinha notícias do pai há mais de oito meses. José arcádiodeveria encontrar-se na condição de fugitivo da guarda aduaneira. Da mãe pouco ou nada lembrava. Fora morta, vítima de uma bala perdida disparada durante uma tocaia armada pela milícia de são borja contra os chibeiros, contrabandistas de azeite de oliva e tabaco, liderados pelo astucioso joséarcádio. Desde então, largado por esse mundão sem porteiras, perambulara pelas ruas de são borja e de vilarejos próximos, ou pelas barrancas do rio uruguai. Donaveridiana assim tomou conhecimento da total carência e do abandono do pequeno. Porém, tivera o imediato pressentimento de que havia em josejoaquín a centelha de uma índole pura, saudável e sincera. No dia seguinte a generosa senhora foi ao encontro de seu confessor, dom carmeloabriggio, e apresentou-lhe seu protegido. Dispôs-se a mentora a investir na educação do menino, vesti-lo e zelar por sua saúde. Dom carmelo, em contrapartida, acolheria o pequeno na água-furtada, aos fundos da igreja, e cuidaria de sua formação religiosa. A partir do encontro com aquela mulher a quem dali para diante dedicaria todos os sentimentos que não pudera endereçar à mãe o moleque transformou-se no sacristão da paróquia de santa teresinha. Doze anos mais tarde josejoaquínabadía cruzava como noviço o centenário portão do seminário seráfico são francisco, na cidade de taquari.

A voz da índia fez com que frei josejoaquín voltasse à realidade. Prestativa, a bugre apanhou a mala e se dispôs a mostrar os aposentos do novo vigário. Ele carecia de banho quente e de um sono reparador. Foi então que se ouviu o bater insistente da aldrava na porta seguida da voz de um homem a rogar, A senhora doña ‘ritoca’ pede ao padre pra ir ao casarão dar os últimos óleos pro coronel. A índia defendeu,Frei josejoaquín mal se arranchou! O recém-chegado mostrou-se irredutível, Doña ‘ritoca’ recomendou que a causa é justa. Resignado, o frade recolheu da mala a estola roxa, o acéter de água benta, o aspersório e um estojo com os óleos sacramentais. Na boleia da aranha, sob a chuva invernal, seguiu com o agregado para a fazenda do coronel.

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