Oferenda de fraldas – José Alberto da Silva

Oferenda de Fraldas

Combinamos oferendar flores ao mar em pleno julho, para comemorar aniversário de casamento. Os seis filhos, tratados como se trata um regimento militar de negros desordeiros, indiferentes aos nossos gritos a plenos pulmões para recomendar cuidados rejubilavam rebeldia molhados até a cintura antes de eu e minha Eva pisarmos na areia. Eles repetiam a alegria que excita crianças frente ao mar em qualquer estação, faça frio faça calor e fazia muito frio. O anjo menor ainda usuário de fraldas se repuxava para livrar-se delas, por vívida lembrança das águas de sua mãe em gestação.

Tiramos os tênis e molhamos não mais do que a sola dos pés sentindo sensação fria de quem desperta à força e simultaneamente se reconforta com o bálsamo das águas. Depositando no mar uma a uma das flores que levara, a Rainha Doce, retorcida de sensualidade, parecia um anjo concentrado em agradecimentos. Sua reza dispensava minha participação embasbacada parecendo completar-se em comunhão com a essência de si mesma a partir da sempre caudalosa cachoeira de seu ventre. Anos atrás ela exigiria que eu trouxesse meu tantã de tamboreiro da sempre bela Mãe Tarsila de Obá, e o agê de Todos os Santos, como se eu pudesse tocar os dois instrumentos ao mesmo tempo.

Como consagração de suposto amor eterno, eu tateava meus sentidos e sentimentos procurando formas de excitá-la sexualmente. Ela não correspondia ao trazer temas como o voo das gaivotas e a visibilidade em mar aberto apesar do inverno rigoroso. Eu descrevia para ela como seria estarmos pelados naquela praia se estivesse deserta. Além da presença dos filhos e outros visitantes, ao contrário do que se poderia imaginar visto o cinzento de geada, às três da tarde, ela planou sua miopia em derredor como se quisesse apenas confirmar o inadvertido insano da proposta.

Dissociados parecíamos ter passado e futuro diferentes. Sem saber o que mais dizer naquela provocação de sua libido, limitei-me a tocá-la, fortuitamente, em partes de seu corpo, como espátulas, quadris e nádegas enquanto caminhávamos descalços pela areia. Ofertamos as crianças à sorte ou ao azar de Deus, cujo Anjo da Salvação nem sempre tem tempo de chegar, para fecharmo-nos momentaneamente em nossa redoma de paixão. Após minutos de silêncio, a Rainha Doce apontou, com ar de malícia, para altos cômoros de areia determinando:

– Vamos subir aqueles cômoros.

Apesar da viva provocação que mantinha, me dei conta do risco de possuí-la debaixo daquela indefinição de sereno ou chuva fina que caía contando com a distração das crianças que não sairiam da beira do mar, como elas aproveitam a nossa para fazerem das suas.

– Vamos logo! – disse ela.

Por jamais termos feito isto, eu sabia que morreríamos de pneumonia dias depois. Coisas da juventude. Eu não pensava com a cabeça de cima. E os filhos? Depois das fraldas eles não precisam mais dos pais? Ela acompanhava minhas fantasias masculinas. Será que ela quer mesmo fazer sexo agora como uma ratazana de areia? Confuso por um instante como pai de preocupações e algumas aflições, eu queria voltar para os filhos. Não vivem dizendo que “mãe é mãe? De repente ela se tornou tão bruta e meu pensamento se desviou de suas partes pudorentas. Será que ela vai me confundir até o fim dos nossos dias? Tuberculina nunca mais! Pelo fim do mulher arcado, definitivamente: nenhum prazer!

Como se lesse cada vírgula desse meu pensamento broxante ela riu, como se houvesse graça em ocuparmos o mesmo leito hospitalar, furados e entubados, com os filhos adultos em nossa volta, dedo em riste e um médico com cara de ausência dando de ombros para a chuva de xingamentos mortais que cairiam sobre nós como um dossel. Quanto mais eu encabulava mais ela ria.
– Se tentar desconversar – disse ela ao pé do romântico cômoro de areia – vou mudar de ideia porque, por enquanto, só quero fazer xixi. Vamos duma vez!

Disse-o e correu cômoro acima, feito menina sapeca, e de vez em quando, rindo cada vez mais alto, se voltava para fazer sinais de que a seguisse.

Titubeante entre a segurança dos filhos e os intempestivos desejos por ela, meus melhores vigores viris não abriam mão de sua Rainha Doce, mesmo que lhe custasse o que Deus quisesse. Mirei com raiva o mar que estava a sapatear e desafiar, com cada onda, o meu nível de testosterona.

Quando nos reencontramos adiante, em passos claudicantes, ela parecia muito mais velha do que minutos atrás. Suas fraldas saiam pelos lados de sua roupa. Solidário eu pretendera ajudá-la a ajeitar-se. Tive a impressão de que com a urina quente escapando-lhe das fraldas frouxas se fora sua atração libidinosa de cinquenta anos atrás.

– Vocês me deixam nervosa! – Disse a filha mais velha, que já levara de volta para o carro as crianças que vez por outra eu e a Rainha Doce tomávamos como nossas.

– Vocês querem morrer? Não estão sentindo a chuvarada que está caindo? Vamos levar, os dois, agora mesmo para um hospital veterinário. Não tem medicina que trate disto em vocês! Venham logo!

Com olhos embaciados eu observava a gesticulação de minha filha, imaginando suas palavras de votos de saúde e paz para o casal. Um amigo disse certa vez que era de alta conveniência a gente não ver e não ouvir muito bem vez que assim a natureza nos poupa aborrecimentos gratuitos.

De seus carros, filhos, netos e bisnetos que nos acompanharam, a contragosto, naquele ritual amoroso de alto risco tinham ares de preocupação. Filhos que nunca cresceram e voltarão a usar fraldas a cada nova geração sem perceberem que secaram as cachoeiras amorosas da africana mãe Eva original. Acenavam para apressarmos saída daquela chuva torrencial sem considerar as fraldas mal ajeitadas que ela arrancou e jogou fora na areia junto com mais de cinquenta gotas de urina. Nesta ida até os cômoros parecia que tínhamos dado o giro da vertigem buscando expiação que nos reconciliasse vez por todas, penitenciados, enfim, por uma vida entrecortada por alegrias de nem tanto. Apesar da vontade de chamar alguém que nos ajudasse a vencer o peso constrangedor da areia em nossas pernas, pés e roupas encharcadas, revoltado tomei de um punhado de areia e joguei na direção do mar. Dando graças a Deus por meu confessor haver jurado esquecimento, não era mais como oferenda de agradecimento por qualquer coisa, sim um desaforo.

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