One way
No silêncio e na escuridão do quarto, adivinho teus movimentos: olhos, arregalados, como que ansiando romper as trevas, buscam respostas às tuas perguntas, que nem sabes a razão de existirem. Ofegas; a angústia transpassa o teu peito, rasga tu’alma, atormenta teu coração, tornando frágeis tuas defesas.
Tu me sabes ali, imóvel, em pé, à tua frente, querendo entender a inquietação que viaja em teu espírito. Teu desejo, eu sei, é gritar, me agredir, me cuspir, me rasgar, me assassinar, dizer que me odeias. Porém, a raiva maior é contigo mesma, por não poderes ser menos passional, ser mais razão, manipular tuas emoções.
Sim, somos a geração dos descartáveis. As perdas há muito deixaram de ser sentidas, e as cicatrizes das relações fracassadas são marcas distantes.
Por que insistirmos na pieguice do amor?
Amar é, dentre tantas outras coisas, dividir e deleitar-se com as coisas que ambos curtem. Entretanto, nenhum poeta escreveu que amar é, também, “torrar o saco” do parceiro.
Quantos versos, quantos poemas, canções e hinos ao amor, para, mais tarde, descobrirmos que somos da geração dos descartáveis?
Virar a mesa, afundar o barco, ir de encontro às idéias até então defendidas? Por que não? Acaso teremos o eterno compromisso de ser fiel àquelas que foram as nossas primeiras verdades?
Sim, virar a mesa! Pôr a casa toda, a rua, o bairro, a cidade inteira de pernas p’ro ar! Mandar tudo p’ro inferno: a dor-de-corno do poeta, a falsa virgindade da primeira namorada, as neuroses da quarta mulher, os bloqueios da milésima amante, o queixume da mãe e dos “filhos-da-outra”; afinal, somos a geração dos descartáveis!
Incinerar as crônicas e os poemas salpicados de saudades, de vinhos e de músicas que nos foram marcantes? Deletar o amor sobre o tapete azul – hoje tão desbotado – ou sobre colchões de penas de cisne, numa bucólica pousada à beira do Lago Zurique? Reviver os porres nas madrugadas intermináveis, para não mais lembrar do pontapé na bunda com que a penúltima-amada-eterna nos brindou? Amanhã, haverá uma outra-mulher-mais-outra-e-sempre-mais. Somos a geração dos descartáveis.
Hei de fazer da minha cama um eterno jardim em flor e festa; repartir o calor dos cobertores e a maciez perfumada dos lençóis com quem me sussurre loucuras ao ouvido e não me exija exclusividade. E, na manhã seguinte, despertar e, sem qualquer ruído, fechar a porta do apartamento ao sair; dobrar na primeira esquina e desaparecer, para todo o sempre, sem ter-me dito sequer o nome. Hei de trocar o violino, o piano, a flauta doce pelo furor dos tambores e das cuícas. Porei fogo no circo, na cozinha, nos carpetes, no apartamento. Hei de espantar os bruxos e os duendes que invadiram o meu espaço. Olharei minha própria imagem refletida na superfície côncava de uma colher de prata; não como assassino, ainda que estrangule o primeiro gato que se atrever a miar sobre os telhados.
Afinal, de que valeu este rancor, este suicídio sem morte?
Volto para a cama e te percebo sonhando, esquecida de todo o amargor do dia de ontem. Encabulado, feito moleque que tocou o sino na hora errada, afago e beijo os teus cabelos, e prometo escrever uma história, mais bonita, feliz, como me pareces estar em teu sono neste quase fim de madrugada.