Os abutres de plantão estão famintos – Sergio Agra
SERGIO AGRA – Intelectual não vai a praia. Intelectual bebe.
OS ABUTRES DE PLANTÃO ESTÃO FAMINTOS
Neste domingo, 17 de março, se viva estivesse, Elis completaria 74 anos de idade. Há exatos 37 anos ocorria a trágica morte desta virtuose intérprete da Bossa Nova e da MPB.
Para os não espiritualizados toda a morte carrega em si componentes de dramaticidade: medo, pânico, pavor, porque tudo “termina”– apesar da pragmática e bem mais adequada cremação – numa fria laje ao rés do chão ou no “condomínio” vertical das frias gavetas mortuárias. Basta, para tanto, um último sopro.
A morte de Elis, sim, “senhores abutres”, deu-se por overdose (que merda somos nós para julgá-la?), e teve esses componentes trágicos.
No início deste ano, em face da exibiçãopela Rede Globo do filme “Elis – Viver é melhor do que sonhar”,dividido em quatro capítulos, após alguns anos de hibernação e ostracismo os detratores, os abutres de plantão, famintos, despertaram e vomitaram os excrementos de seus preconceitos, de suas covardias e pusilanimidades, viralizando nas redes sociais manifestações sobre o último ato que antecedeu a morte de Elis: um “triatlo” (tabaco, uísque e droga sintética) em overdose, enquanto seus três filhos brincavam no jardim da luxuosa casa nos altos da Cantareira, São Paulo.
Para o discriminador, para o intolerante e para o falso moralista, para os rançosos aderentes da caquética TFP (Tradição, Família e Propriedade), protegidos pelo anonimato das redes sociais, proponho uma premissa:
– Vocêé o maior intérprete da música popular brasileira, detentor de talento e dono de um alcance vocal insuperável que até hoje e nos próximos cem anos não haverá igual, ainda que com um gênio reconhecidamente irascível, um virtuose, com três filhos pequenos para criar e sustentar, saindo de uma segunda relação fracassada, exatamente no auge de sua carreira, com os antológicos shows “Falso Brilhante”, “Transversal do Tempo”, “Trem Azul”“Agora sou Uma Estrela”.
Fala-se que a antológica gravação de “Atrás da Porta”, foi influenciada pelo momento afetivo em que Elis vivia. Em 1972, a cantora atravessara tumultuado processo de separação de Ronaldo Bôscoli; agora findava o casamento com o pai de Maria Rita e Pedro Mariano (além de João Marcello, filho do primeiro casamento), seu melhor pianista/tecladista e arranjador, Cesar Camargo Mariano, líder de uma banda impecável, responsável pelo auge de sua carreira, com os já mencionados “Falso Brilhante”, “Transversal do Tempo”, “Trem Azul” e “Agora Eu Sou Uma Estrela”.
“Atrás da Porta”, composta por Chico Buarque e Francis Hime, música magistralmente interpretada por Elis Regina, tem uma história bastante curiosa na sua concepção. Francis morava nos Estados Unidos e passava férias no Brasil. Em uma festa restrita a poucos amigos, encontrou-se com Chico Buarque e tocou a melodia da música, Chico gostou e começou a escrever, lá mesmo, a letra. Os dois não lembram o motivo – Chico atribui ao excesso ou mesmo a falta de bebida e até falta de inspiração momentânea – o fato é que o letrista só conseguiu fazer uma parte da música.
Elis a ouviu e ficou maravilhada. Gravou o trecho com letra e deixou a segunda parte apenas orquestrada, uma forma, para muitos, de pressionar Chico a concluir a música. A fita chegou até Chico que imediatamente concluiu sua obra com os versos:
“Dei pra maldizer o nosso lar / Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço / Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua”.
A canção“Atrás da Porta”, de Francis Hime, Chico Buarque de Holanda e da própria Elis foi gravado justamente durante esse crucial período. Essa dramática e apoteótica interpretação nada mais foi do que um pedido de socorro.
Elis permitiu-se afundar na depressão e, via de consequência, ao suicídio. Abandonou a luta, sobretudo, os três pequenos que brincavam no jardim, aos cuidados de uma governanta babaca que sequer se interessou em saber se a patroa, trancada em seu quarto desde a noite anterior necessitava de seus serviços.
Conhecida a premissa acima, questiono aos abutres de plantão: Vocês deixar-se-iam conduzir, a exemplo de Elis, pelo barqueiro Caronte e abandonando no Rio Aqueronte* todos os seus sonhos, desejos e deveres que não foram realizados em vida, rumo ao Primeiro Círculo do Inferno?
Pois Elis se permitiu. E vocês, hipocritamente, me responderiam que “Não! Jamais faríamos isso. Lutaríamos atévencermos(?) essa batalha!”. Se instados a dizer somente a verdade, a única resposta que os isentaria de serem mentirosos abutres seria, “Não te podemos responder nem “sim”, nem “não”, sem antes nos defrontarmos com o monstro da solidão e, por conseguinte, da depressão!”.
“É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração…”.
*Aqueronte – O Barqueiro do Inferno – Mitos da Mitologia Grega. Sua função era transportar para além do Estige e do Aqueronte as sombras dos mortos em uma barca estreita, feia e de cor fúnebre.