Os anos dourados - Sergio Agra - Litoralmania ®
Sergio Agra
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Os anos dourados – Sergio Agra

OS ANOS DOURADOS

Capítulo V da Série As Crônicas de Aleph

A vivenda para os veraneios era nos tempos primeiros uma despretensiosa construção que o avô materno de Alephlograra erguercom os frutos do trabalho e dedicação por mais de três décadas como Almoxarife-mor de uma sólida e cinquentenária instituição financeira.

A construção carinhosamente batizada de Chalé Grandepor Aleph e pelos primos era constituída, além do rés de chão, por um sótão com área útil similar à do pavimento térrero.

Naquele espaço superior o generoso e inventivo avô, ante a chegada de novos netos, concebera duas alas, divididas por um cortinado suspenso num cordame que se estendia de uma extremidade a outra da mansarda, guarnecidas com sete pequenos leitos e dois ou três rústicos armários à guiza de roupeiros. De um lado do cortinado dormiam as três primas; do outro, Aleph, o pequeno irmão e os dois primos, todos bem mais jovens do que Aleph.

Com a morte do sogro o pai de Aleph adquiriu o terreno vizinho e pôs o Chalé Grande, para choro e ranger de dentes da molecada, abaixo e no seu lugar ergueu uma casa de alvenaria provida de todos os confortos que os novos tempos ensejavam: dois pavimentos, com área maior do que o próprio vetusto casarão, água encanada, ducha exterma para os banhistas que retornavam da praia situada junto ao muro nos fundos do terreno. No segundo pavimento instalaram-se duas suites, três dormitórios e dois banheiros; na parte térrea, a cozinha americana, apenas separada da sala de jantar por um longo e prático balcão com cobertura de granito esmaltado e a colossal mesa, com tampo do mesmo material que ornava o balcão; esta mesa acolhia comodamente até doze comensais.

A casa também dispunha de lavanderia, churrasqueira, garagem coberta para dois automóveis, e um amplo e confortável living, onde o pai de Aleph, na temporada de verão, nas manhãs de domingo, a exemplo do que durante o ano ocorria na cidade, costumava receber a visita do Sr. Leccapiedi.

O Sr. Leccapiedi, ainda rapazote, fora admitido no banco e designado para o Almoxarifado, sob a supervisão do avô de Aleph, a quem o Sr. Leccapiedi destinou sincero e perene reconhecimento.

O Sr. Leccapiedi era dono de um carisma irresistível, qualidade acrescida pelos constantes salamaleques com que este homem saudava aos que lhe iam ao encontro. Logo, logo, atraíra para si as simpatias não apenas das chefias, das gerências, do próprio Diretor-presidente do Banco, galgando, em tempo impensável e demasiado veloz, diferentes cargos até ser ungido a uma de suas diretorias, Ostentava, entre caras e bocas, hábitos de indisfarçável nouveau riche. Apesar ser pouco mais jovem do que o pai de Aleph também se tornara amigo por ingerência do velho Almoxarife. O Sr. Leccapiedi nas visitas dominicais trazia sob os braços antigos discos de goma-laca de 78 rotações por minuto, conhecidos como “bolachões”, com gravações de árias das óperas mais populares que muito deleitavam a família amiga. Certamente fora este inusitado contato com a música erudita que, mais tarde, fizera de Aleph incondicional diletante de Óperas.

Essas visitas se estendiam aos domínios do Chalé Grande. O Sr. Leccapiedi hospedava-se no hotel do balneário. A chegada do Sr. Leccapiedi ao Chalé Grande era anunciada pela estridente buzina de seu Buick branco conversível.

O automóvel exibia luzentes cromados e os pneus eram adornados por impecaveis bandas de surpreendente alvura para as condições das ruas que circundavam aquele sítio à beira-mar. Após o almoço, o Sr. Leccapiedi lotava o imenso conversível com a companhia do pai de Aleph, deste e dos seus quatro primos, e seguiam pela estrada de chão batido até Santo Antônio da Patrulha. Na pequena e acolhedora aldeia a meninada refestelava-se num verdadeiro festival de guloseimas: sonhos, rapaduras de melado, e puxa-puxas. O pai de Aleph invariavelmente obtinha na destilaria lindeira à estrada que ligava aquele município a Osório uma ou duas garrafas da afamada cachaça.

A mãe de Aleph não via com bons olhos a presença do Sr. Leccapiedi junto aos meninos. No balneário, onde quase todos os veranistas se conheciam, estendiam-se boatos de que o Sr. Leccapiedi costumava receber em sua bela casa no bairro Moinhos de Ventoconhecidas locutoras e radioatrizes, promovendo festas que punham em polvorosa a vizinhança do sóbrio bairro em que residia. Dizia a lenda que, numa dessas madrugadas, os incomodados moradores das cercanias acionaram a Rádio Patrulha. Estacionadas as duas viaturas policiais, estas acolheram o Sr. Leccapiedi, as convidadas, o Diretor-Presidente e demais colegas que compunham o alto staf do Banco, conduzindo-os para a Delegacia de Costumes, onde os “focas” e os papparazzi de plantão somente concordaram em rasgar as anotações e velar seus filmes fotográficos em troca da concessão de vultosos empréstimos bancários, com pagamento a perder de vista e isentos de quaisquer encargos fonanceiros. Com o passar dos anos, as visitas do Sr. Leccapiedi foram rareando.

A era de ouro do Rádio — cujas atrações consistiam em programas de auditório, musicais ou humorísticos, de noticiários, de rádio-teatro e de gingles de extremada ingenuidade anunciando o produto dos patrocinadores perdera sua magia e encantamento, sem que isso afetasse a continuidade das festas do Sr. Leccapiedi, agora com as artistas e modelos da televisão. A gandaia estabelecera-se no luxuoso clube noturno As Mil e Uma Noites. O prédio côncavo, com monumental fachada de vidro e uma marquise curta apoiada em altas colunas cilíndricas, estava localizado na Avenida Guaíba, no bairro Assunção, às margens do Lago-Rio Guaíba.

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