Palavras cruzadas
– “Ato solene de união entre duas pessoas de sexos diferentes…” com nove letras?…
O vento bate em cheio no seu rosto. Os óculos escuros – insuficientes para conter a luminosidade refletida nas águas cálidas e quase transparentes da pequena angra, orlada de montanhas por todos os lados – encontram-se displicentemente dispostos sobre a testa.
Em seus olhos azuis brilha por momentos uma aguda luz de pena que infunde em seu rosto insólita gravidade; um instante depois a luz que refletem esses mesmos olhos é de alegre zombaria. Basta levantar da cadeira de praia e sumir sem deixar vestígios; é só ela querer. O marido, distraído com as novidades dos amigos da roda de caipirinha, não iria se importar, e quando fosse procurá-la ela já estaria longe, tendo, antes, abandonado o almanaque de palavras cruzadas com que buscava se entreter.
O automóvel de meu pai era um Hudson, ano cinqüenta e um, prateado Trazia o revestimento do painel e dos assentos, de tonalidade pinhão, em couro legítimo. Aos nossos olhos de crianças, mais parecia, pelo imenso tamanho, um autêntico carro anfíbio do que propriamente um auto de passeio. Daí porque o chamávamos, carinhosamente, de Banheirão.
Aquele primeiro sábado do ano de sessenta fora dos mais tórridos dos últimos vinte anos, afirmara papai. Bem cedo ainda, ele teve a iluminada idéia de abarrotar o Hudson com as crianças da redondeza e seguir para as areias de Capão da Canoa. Ruy também iria.
Ruy viera do Rio de Janeiro. Mudara-se com a família para a casa vizinha à nossa havia três meses. Ele deveria estar perto dos doze anos, e olhava-me com indisfarçável ar de superioridade, como se a diferença de pouco mais de dois anos e o fato de ser carioca assim o autorizasse.
O físico ainda lembrava o de um moleque magricela. O shortezinho curto e justo, e a camisa regata que ele costumava vestir deixavam à mostra coxas e músculos já desejáveis, evidenciando a estatura e os bíceps dos super-heróis das histórias em quadrinhos. Minha irmã mais velha percebera o mesmo, e piscando-me, divertida, incentivava o vôo das minhas precoces fantasias juvenis.
Partimos de Porto Alegre, cruzamos por Gravataí, Santo Antonio e, mais tarde, Osório. Éramos, ao todo, nove. O Banheirão acomodou com bravura e generosidade o alegre bando. O Balneário de Capão da Canoa também.
Brincávamos separadas dos meninos. O jogo de bola na água, no entanto, ensejou nos tornássemos um único grupo. Súbito, a bola fora lançada com maior força para além da “rebentação”. Nadei no seu encalço, e quando me dispunha a segurá-la, um sutil golpe de mão levou-a para uma outra direção. Era Ruy. Matreiro, mergulhara sem que me apercebesse e a alcançou a bola antes de mim. Riu-se do meu espanto e de minha indisfarçável indignação. Fingiu devolver-me a bola.
Quando novamente estendi os braços para apanhá-la, ele a lançou na direção dos nossos companheiros. Minhas mãos tocaram-lhe o tórax e, com o impulso que eu havia dado, “perdi o pé” e, para não correr o risco de me afogar, abracei-lhe o pescoço. No instante seguinte, pude sentir os seus braços, então submersos, a cingir-me a cintura. Constrangida, sequer ousei encarar-lhe. Tive, no entanto, a certeza de que Ruy sorria; não o sorriso despudorado dos trêfegos e bacantes, mas o brilho de quem, naquele momento, assim como eu, descobria, ali, nas ondas de Capão da Canoa, a sensualidade e o frenesi da paixão.
– “Viajando”, meu bem? – o homem pergunta, não sem uma ponta de ironia.
Desta vez, sim, ela abandona definitivamente o almanaque de palavras cruzadas e responde:
– Apenas buscava a origem do problema, Ruy…