Para especialistas, portaria sobre terras indígenas é precipitada
Conforme o STF e a Procuradoria-Geral da República confirmaram à Agência Brasil, o processo envolvendo a demarcação da reserva indígena roraimense não só não foi concluído (ao contrário do que chegaram a dizer algumas organizações não governamentais), como é alvo de ao menos seis pedidos de esclarecimentos, os chamados embargos de declaração, que estão na pauta do Supremo para serem julgados em breve.
O embargo de declaração é um recurso rotineiro, apresentado ao juiz ou tribunal que emitiu uma sentença sobre a qual resta dúvidas, por qualquer uma das partes interessadas no processo. Normalmente, esclarecidas as dúvidas pontuais, a decisão judicial é mantida em sua essência e, se necessário, pequenos ajustes são feitos, esclarecendo os pontos obscuros.
Um dos embargos foi protocolado pelo advogado Paulo Machado Guimarães, que representa sete comunidades indígenas (Socó, Barro, Maturuca, Jauari, Tamanduá, Jacarezinho e Manalai) que vivem na Raposa Serra do Sol e foram admitidas como assistentes da União no julgamento ocorrido em 2009. Elas pedem esclarecimentos sobre oito das 19 condicionantes impostas pelo STF para aprovar a manutenção da demarcação em terra contínua.
Segundo o advogado, os índios entenderam ser necessário que o Supremo esclareça alguns pontos, como a necessidade de as comunidades indígenas obterem permissão para praticar o garimpo em suas próprias terras ou a desobrigação de as comunidades serem consultadas sobre iniciativas de interesse da política de defesa nacional, como a instalação de bases militares em seu território.
“A decisão do STF ainda não transitou em julgado e essas condicionantes podem sofrer modificações ou até mesmo ser anuladas em parte. Portanto, considerar que essas condicionantes são afirmações definitivas do tribunal é, tecnicamente, um equívoco”, disse o advogado.
As informações sobre os questionamentos em torno da decisão do STF sobre a Raposa Serra do Sol vieram à tona após a Advocacia-Geral da União (AGU) ter publicado, na terça-feira (17), uma portaria que estende para todos os processos demarcatórios, inclusive os já finalizados, a obrigação de que sejam observadas e cumpridas todas as 19 condicionantes impostas para que a demarcação da Raposa fosse mantida em terras contínuas.
À Agência Brasil, o advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, disse que a publicação da Portaria nº 303 visa apenas a regulamentar a atuação de advogados públicos e procuradores em processos judiciais que envolvam áreas indígenas em todo o país, “apropriando uma jurisprudência que o STF entendeu ser geral”.
Para Guimarães, a iniciativa da AGU é precipitada diante da possibilidade de as condicionantes serem revistas. “A decisão do STF, com todas as suas condicionantes, diz respeito a uma única terra indígena e está em vigor. Ninguém tem dúvida disso. Agora, se o advogado-geral da União quer extrair dela consequências administrativas para os seus colegas, é preciso cautela. Essas condicionantes podem perfeitamente ser alteradas pelo próprio STF. Já se a intenção é estender a decisão para todas as terras indígenas, a União, deveria, no mínimo, submeter a questão ao Congresso Nacional para que fosse criada uma lei.”
O mesmo entendimento tem o advogado José Afonso da Silva, para quem a Portaria nº 303 é inconstitucional. O jurista rebateu a declaração de Adams, que garante estar apenas normatizando a atuação das unidades da AGU com base na jurisprudência criada a partir da decisão do STF.
“A decisão do Supremo diz respeito a um caso específico. Não criou jurisprudência geral coisa nenhuma. Pode ser que, no futuro, o STF afirme alguma outra coisa, mas, até lá, um caso único e específico pode até criar um precedente, mas não uma jurisprudência. O que a AGU está fazendo é, a partir da sua própria interpretação do que os ministros decidiram em 2009, estender para todas os outros casos a decisão”, avaliou o constitucionalista, que, além de procurador e professor universitário aposentado, foi secretário de Segurança Pública de São Paulo entre os anos de 1995 e 1999.
Para o jurista, com a portaria, a AGU contraria alguns aspectos já devidamente definidos na Constituição Federal, como no caso da tentativa de delimitar de quais recursos naturais existentes nos territórios indígenas os índios podem usufruir com exclusividade. “Isso não é função da AGU, cuja portaria não tem poder de regular nada disso e muito menos de determinar que os processos [demarcatórios] já finalizados sejam revistos e adequados [conforme estabelece o Artigo 3º da portaria]”, apontou Silva.
Diante da polêmica, a Agência Brasil perguntou à assessoria do STF se as 19 condicionantes impostas pelos ministros para manter a demarcação da Raposa Serra do Sol têm que ser observadas e cumpridas em todos os processos demarcatórios de terras indígenas. A Corte, contudo, respondeu que não comentará o assunto, já que a constitucionalidade da portaria pode vir a ser questionada no STF.