Piaf e os mitos
Acabo de voltar do flamante Balneário Camboriú Shopping onde, numa das confortáveis sete salas do GNT, assisti ao impecável e comovedor Piaf. O filme retrata, com desapaixonada fidelidade, a vida de Édith Piaf, a maior chanteuse e intérprete das canções genuinamente francesas.
A infância dessa parisiense, nascida Édith Giovanna Gassion, abandonada pela mãe – alcoólatra e que cantava nas ruas e em cafés – e, logo em seguida, pelo pai – um aventureiro que trabalhava no circo como contorcionista e tinha um passado teatral – que a deixou com a avó paterna – dona de um bordel, a quem somente os lucros importavam – fez com que, criança, ainda, tivesse contato com prostitutas e seus clientes, e o que ocasionou nela um profundo impacto em sua personalidade e visão sobre a vida.
Solidão fora o sentimento que mais se fizera presente em toda existência da Môme Piaf, expressão francesa que significa “pequeno pardal”. À pergunta de uma jornalista, dois anos antes de vir a falecer, se ela tinha medo da morte, Édith respondeu que muito mais lhe atemorizava a solidão. Piaf conheceu as drogas pesadas. Tornou-se dependente do álcool e da morfina, em razão de um acidente de automóvel.
Isso tudo, aliado à intensa e frenética vida noturna, dizimou-lhe a saúde que, desde a infância sempre fora frágil. Em que pese ter morrido aos quarenta e sete anos, Piaf trazia a estampa e o corpo de uma anciã de setenta. Édith Piaf não apenas cruzou os umbrais da imortalidade, a qual Milan Kundera com inigualável maestria descreve em obra literária sob o mesmo título, como ingressou no seletíssimo Panteão dos mitos.
Eram estas as reflexões com que, ainda sob a comoção causada pela arrebatadora Je ne regrette rien – o gran finalle, rápido e definitivo do filme – saí do cinema. Afinal, o que é um mito? Quem são os mitos? Para transformar-se num mito há de se morrer ainda cedo ou, ao contrário, porque morreram cedo eles se tornaram mitos? Janis Joplin afirmou que mil vezes morrer aos vinte anos vividos intensamente, do que serena e pacificamente aos setenta acomodada em cadeira de balanço. Essa galeria é extensa: James Dean, Marilyn Monroe, Elvis Presley, Jonh Lennon, Princesa Daiana, Leila Diniz, Elis Regina, Ayrton Senna.
Todos, de uma forma ou de outra, não apenas cedo partiram como suas mortes foram trágicas. Marilyn seria parte integrante dessa galeria se, hoje, fosse uma dócil e pudica octogenária?
Imagine seria o maior hino de paz sem o holocausto de Lennon? Elvis, um empapuçado gordalhão? Elis, uma cordata e afetiva vovó? Senna, efetivamente, seria maior do que Schumacher? Todos eles, com seus vícios, suas fragilidades e, até mesmo com suas loucuras, por terem sido verdadeiros, abdicaram às máscaras que, com certeza, esconderiam o lado obscuro, hipócrita e podre de suas condições de humanos.
Aos mitos não se concedem máscaras! Aos mitos não se permitem inverdades! Se, depois disso tudo, há quem entenda “Che” Guevara como um deles – não lhe bastasse a despudorada máscara de “herói” -, então que mito – o verdadeiro! – legaria à posteridade sentença de tamanha idiotice e desconectada da mais elementar lógica como a de que “hay que endurecerse sin perder la ternura jamás”? Ora, nem mesmo as românticas leitoras de Capricho e de Caras acreditam nisso.