Psiquiatra Dr. Sander Fridman fala para o Jornal O Globo, do RJ, sobre o caso do sequestrador da Linha 2520
Dr. Sander Fridman é doutor em psiquiatria pela UFRJ, ex-diretor científico do Serviço de Doenças Afetivas da Santa Casa de Poa, ex-responsável pelo Serviço de Depressões do CM Adventista de Botafogo/RJ.
* Para atendimento em Capão da Canoa ligue: 3665-2487, em Osório: 3663-2755.
Entrevista do Dr. Sander Fridman para o jornal o Globo, Rio de Janeiro, 21/08/2019.
Sequestro da Linha 2520 na Ponte Rio Niterói – (O fantasma da linha 174)
1 – Gostaria que o sr analisasse o caso de Willliam.
R.O sequestrador da Linha 2520, na Ponte Rio-Niterói, diferentes testemunhas afirmaram que era um jovem que vinha sofrendo de depressão, que se mostrava educado, respeitoso no contato com os reféns, mas que os ameaçava com arma de brinquedo, arma de choque, coquetel molotov, gasolina e um isqueiro, e que usava a maior parte do tempo uma máscara de procedimentos cirúrgicos, que evocou a alguns, os autores da chacina da escola de Suzano.
William não sequestrou apenas os passageiros e o motorista do ônibus, mas centenas de milhares de pessoas que tiveram seu direito de ir e vir aprisionado, inclusive ambulâncias, policiais que atendiam ocorrências, pessoas que corriam no dia-a-dia por suas vidas, e declarou aos seus reféns no ônibus, que ninguém se machucaria, apenas teriam ao final do dia uma história interessante para contar, como um personagem de Pulp-Fiction, fazendo graça e tentando assim manter sob controle o medo dos reféns de uma desgraça pelo fogo, administrando assim o risco de atos de desespero pelos reféns.
E declarou que pretendia, através do sequestro, entrar para a história.
2 – Seria possível prever seu ato?
R.Um ato extremo de uma pessoa que sofre de uma doença mental crônica pode ser às vezes previsto, dependendo do que o paciente revele para as pessoas com quem convive – familiares, amigos, colegas de trabalho, conhecidos.
Entretanto, numa metrópole, a lei social básica é “cada um com a sua vida e ninguém tem nada a ver com a vida do outro”. A intromissão, a especulação, são mal-vistas, e a responsabilidade social é sempre muito abstrata, às vezes, até mesmo, dentro das famílias.
Mesmo assim, muitas vezes, um ato extremo não pode ser previsto, ou porque o paciente é demasiadamente reservado, ou porque decidiu seu ato de modo abrupto, impulsivo.
Frases soltas – “vocês ainda vão ouvir falar de mim” – interesse excessivo ou muita simpatia por personagens que fizeram coisas muito reprováveis, sinais de desesperança, angústia, e revolta intensas, permitem antever a possibilidade de que algo de muito ruim possa acontecer. É a oportunidade para que alguém que respeite e se importe com o paciente tome a iniciativa de conversar, de convencê-lo a procurar ajuda e, principalmente, de acompanhá-lo à avaliação psiquiátrica.
3 – A polícia investiga se ele foi buscar na Deep web inspiração pra o ataque. O sr. conhece casos assim?
R: Casos dramáticos que mexem, a um só tempo, com a vida de centenas de milhares de pessoas, em duas cidades diferentes, ao mesmo tempo, são muito incomuns. Infelizmente, casos igualmente surpreendentes, pelos quais os familiares posteriormente se sentem muito culpados, se perguntando se poderiam ter feito algo para evitar, inconsoláveis, infelizmente, são relativamente comuns, nos casos de atos suicidas, mais frequentes em jovens e idosos.
4 – Como a justiça e a medicina forense tratam de casos como este?
R.Inimputabilidade criminal é aquela situação em que uma pessoa doente mental ou em estado mental anormal comete um ato semelhante a crime, pelo qual o autor é sentenciado a uma medida de segurança, por tempo indeterminado, sob custódia médica, em lugar de condenado a uma pena bem definida, com início, meio e fim.
Duas são as condições que podem levar a justiça a considerar um réu inimputável: a incapacidade para entender que o que estava fazendo era um ato ilegal (por exemplo, estava convencido, por conta de estado de adoecimento mental, de que a vítima queria matá-lo, ou representava um perigo mortal iminente para si ou para outros – delírios, alucinações); e/ou era incapaz de auto-controle, de se conduzir com seu entendimento de que o que fazia era ilegal (por exemplo, matar alguém por ter uma raiva incontrolável, impulsividade extrema, como em quadros maniacos, esquizofrênicos, intoxicações por drogas, quadros mentais de causa orgânica).
5 – Na sua opinião qual a situação da saúde mental no estado?
R.Um número muito grande de pessoas depressivas e portadoras de outras doenças mentais graves, e suas famílias, tem hoje acesso a atendimento de saúde mental num grande número de instituições e espaços públicos e privados, inclusive internações hospitalares para casos especiais. O acesso a medicamentos psiquiátricos caros e muitas vezes necessários, entretanto, é comumente muito limitado. É do interesse de todos que os tratamentos efetivos para doenças mentais graves sejam acessíveis a todos que deles necessitam.
6 – Quais os riscos para os pacientes e para a população das doenças mentais graves?
R.A doença mental já é a principal causa de absenteísmo no trabalho, e um grande ônus para os serviços de saúde das sociedades em geral. A redução da prevalência dos sintomas e doenças mentais numa população depende da disponibilidade de diagnóstico precoce, de tratamento efetivo, de informação e apoio aos familiares, e da capacidade de prevenir a ocorrência de novos casos.
Embora fatores genéticos sejam difíceis de modificar, a constante pesquisa e minoração de fatores de risco deve ser buscada em cada sociedade, entre eles a diminuição do desemprego, a facilitação da capacidade das pessoas gerarem meios de subsistência e de realização pessoal e econômica, o resgate de uma escola que promova nas crianças a capacidade de refletirem existencialmente sobre suas vidas e escolhas, que lhes ensine a identificar seu próprio sofrimento e a procurar ajuda. Uma escola menos centrada no Enem e no vestibular, e mais centrada no bem estar e no desenvolvimento de cada criança e jovem, gerará pessoas que cuidam melhor de si mesmas, suas famílias e suas comunidades.
7 – O que precisa ser observado em casos como o resgate de vítimas, quando o agressor está em surto ?
R.Reportagens deram conta de que a equipe de atendimento ao caso contou com dois negociadores, uma psicóloga, um “médico”, um gerente de crise e um atirador de precisão.
Não se leu da presença de um psiquiatra na equipe, profissional essencial no atendimento de uma pessoa que mostrava sinais de que não tinha objetivos claros, algo preciso que desejasse, algo a ser negociado, apesar da enorme confusão que foi capaz de causar para duas cidades inteiras, e do terror e risco iminente para 37 reféns.
É claro que o Rio de Janeiro aprendeu muitas lições com a tragédia do ônibus 174, 19 anos atrás, e elas foram postas em prática no enfrentamento da crise do sequestro da ponte Rio-Niterói.
Em cada caso há o que ser aprendido. Talvez a incorporação à equipe de um psiquiatra com experiência no atendimento de pacientes psiquiátricos graves tivesse levado a um desfecho mais rápido e ainda melhor, e, portanto, menos custoso para as populações do Rio e de Niterói, e da família do rapaz insano.
8 – Como prevenir outros casos como o de William, de Sandro (174), de Wellington (Realengo), de Guilherme e Luiz Henrique (Suzano)?
R.A “autópsia psicossocial” é um procedimento que analisa os vários fatores envolvidos na história de cada autores e a tragédia relacionada, e busca elementos relevantes e indicadores do que viria a acontecer. Permite ensinar à sociedade a identificar casos antes que aconteçam, e a oferecer ajuda quando ainda é tempo. Esta deveria ser uma obsessão de Estados responsáveis: aprender o máximo possível com cada experiência para prevenir ao mais possível a próxima. É provavelmente ilusória a ideia de que algum dia seríamos capazes de prevenir tudo e qualquer coisa de ruim, sempre. Mesmo assim, esto é o
Imperativo ético, e o desejo de todos, numa sociedade responsável: aprender para, tanto quanto possível, prevenir.
9 – Pode-se atribuir o sequestro da ponte Rio-Niteroi à doença mental de William?
R. Apenas parcialmente. Milhares de pessoas sofrem de Depressão e não saem por aí ameaçando as pessoas de matá-las, queimando-as vivas.
O sequestro teve mais a ver com os valores e disposições morais do paciente – como a ideia do que é ou não legítimo de se fazer para “entrar para a história”, como aparentemente disseram testemunhas ter ouvido de William como uma de suas motivações. Seus valores não decorreram da doença.
A Depressão pode ter-lhe dado a disposição maior para realizá-los, ao não se importar mais com as consequências pessoais.
Mas foram seus valores que o levaram a fazer o que fez. Muitos dão grande valor a Stálin, Hitler, Castro, ou Maduro, entre outros, pelas coisas grandiosas que fizeram, e consideram secundárias, em nome disso, o custo em vidas e dor que causaram.
Transmitida tal ideia nas escolas, fortalece-se o valor de que os fins prevalecem sobre os meios, e que a dor e às mortes não importam. E que, para entrar para a história, valeria queimar 37 pessoas e a si mesmo dentro de um ônibus – se é que de fato uma tal hipótese de motivação fosse confirmada.