Quando o Rio de Janeiro era a coisa mais linda - Sérgio Agra - Litoralmania ®
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Quando o Rio de Janeiro era a coisa mais linda – Sérgio Agra

Quando o Rio de Janeiro era a coisa mais linda - Sérgio AgraQUANDO O RIO DE JANEIRO ERA A COISA MAIS LINDA 

Uma cidade a cantar,

a sorrir, a cantar, a pedir
a beleza de amar

– “Se todos fossem iguais a você” – Tom Jobim

Já se passaram cinco meses, ou vinte semanas, ou cento e cinquenta dias, ou três mil e seiscentas horas e quarenta e oito minutos quando vocês, caros amigos, adoráveis amigas, minhas sempiternas namoradas, hoje guardadas no relicário das lembranças de um doido e louco passado que nunca há de exigir uma ínfima busca de tempo perdido, apesar desta longa e proustiana frase em que – quem diria, Sergio, você está irreconhecivelmente obediente ao “fique em casa”?  – em que me encontro em prisão domiciliar.

Já se tornou clichê afirmar, “esta é a nova realidade!”

“Nova realidade” é portar máscara cirúrgica que embaça as lentes dos óculos, acordar após o meio-dia, almoçar às quatro, cear às onze, “obrar” três, quatro vezes ao dia em horários dos mais atípicos – não, por favor! Não é ocasião de encolher-se em pruridos e fingir que isso com você não acontece! Sou capaz de apostar que naqueles recentes dias de temperaturas abaixo dos 5 graus, como escreveu em burlesca crônica publicada também aqui em Litoralmania meu talentoso e pândego amigo José Alberto Silva, “…banho pra quê, minha Rainha Doce, se a gente não vai sair?…”.

Sim, por mais acolhedoras, por mais alto astral que sejam as paredes de nossas casas e todas as nossas casas e seus cômodos o são não há espírito a quem se possa atestar sanidade mental nesse tempo de indefinida clausura e de incertezas para os dias (Meses? Anos? Décadas?) futuros. Não merecemos isso! Nem o Ronaldinho Gaúcho merecia em que pese se encontrasse como “hóspede” único, ele e o pilantra de seu primeiro irmão, craque das “bolas”, ainda que num luxuoso hotel paraguaio.

Avisto das janelas do oitavo andar, neste tarde de chuva fina, fria e úmida, a inútil paisagem em branco e preto do oceano e das montanhas. Não vislumbro aqui na aldeia jamais existiu a coisa mais linda, a garota que passa a caminho do mar, sequer o Cristo de braços abertos lá no alto das montanhas, com promessas de que isso vai passar…

Assim mesmo sorrio ao admirar a beleza exuberante do cinzeiro de cristal que enfeita o consolo ao meu lado e ante a ideia somente a abstração de que o adorno parece me rogar, “… joga-me com todas as tuas forças sobre a cabeça de quem lá embaixo passa…”.

Sorrio por que me vêm à memória os tempos em que vivi, no final dos anos sessenta, no Rio de Janeiro, aquela cidade de enlouquecida alegria, onde o jazz-samba, a bossa nova, um banquinho e um violão, embalavam, nos apartamentos dos amigos, rodinhas de uísque, cigarros (lícitos uns e outros nem tanto), nossa dor de corno, de noites de fossa. O Rio de Janeiro, cidade de sol, de praia, da garota de Ipanema, do Samba do Avião, das gafieiras, do samba de raiz, dos carnavais da Praça Onze, dos morros, das favelas que o hipócrita proselitismo nos determina chamar de comunidades. O Rio de Janeiro, do aristocrático Copacabana Palace, dos Teatros Municipal e do João Caetano,dos Restaurantes do Leme, o Marius e o La Florentina, onde as celebridades da música e dos folhetins globais iniciavam a noite que se estendia nas boates e clubes de música, o Zum Zum, o Barroco, o Girau. O Rio de Janeiro que ainda não se refizera do ignóbil estupro que o megalômano JK lhe houvera imposto, transferindo a Capital do Brasil, à vista da Baía de Guanabara, para a pocilga chamada Brasília, no Planalto Central. O Rio de Janeiro que sequer sabia o que era guerra do tráfico por disputa de “pontos” de venda, crime organizado, milícias. O Rio de Janeiro em que imperavam apenas o bicheiro, o boêmio, o malandro que vestia camisa listrada, saía pelas ruas da Lapa e bebia parati.

Fora neste Rio de Janeiro, num show de Maria Bethânia na boate Barroco, que encontrei Conrado Guimarães, amigo e conterrâneo, que à época residia com a tia naquela cidade, e razão agora do meu sorriso daqui da janela do apartamento.

Conrado estava acompanhado pela bela e esfuziante Fada, musa do movimento Jovem Guarda, com quem ele mantinha abrasador affaire.A loira, no entanto, viria conhecer importante empresário do ramo de importação e exportação de tecidos. Eron, bem mais velho e com as guaiacas forradas, não precisou de muito esforço para atrair a Fada.Transtornado, Conrado lançou um belíssimo cinzeiro de cristal da velha senhora através da janela do apartamento no décimo quarto andar do prédio na Av. Nossa Senhora de Copacabana. O anjo guardião do amante rejeitado decidira por ele interferir. O caro adorno espatifou-se de encontro ao asfalto da avenida. No dia seguinte, “entupido” pelo coquetel de Dormonid, Valium e Librium, foi entregue aos cuidados do comissário de bordo do primeiro avião com destino a Porto Alegre.

Após, mal curadas as cicatrizes da paixão, ele adquiriu o hábito de portar uma bolsa de couro a tiracolo.Ao visitar os amigos indagava logo na chegada se havia uísque. Caso não ali houvesse abria a bolsa, retirava a garrafa de scotch de primeira linha e completava: – “Ao menos gelo nesta casa tem?”.

Torno a olhar para a avenida. As luminárias já foram acesas. Chove mais forte agora. Não há ninguém caminhando pelas calçadas. A ideia que há pouco me assaltara a de arremessar o cinzeiro de cristal ficou esquecida quando das lembranças da ex-Cidade Maravilhosa. Do Rio de Janeiro que não sentíamos vergonha em cantar O Rio de Janeiro continua lindo. O Rio de Janeiro continua sendo. O Rio de Janeiro, Fevereiro e Março…, mesmo porque Chacrinha partiu sem a Teresinha num rabo de bacalhau, o Flamengo é hoje verdadeiramente um ninho de urubus e o crime organizado o cartão de visita.

Para suavizar, pois que notícia não mais as tive de Conrado Guimarães, se ele soubesse que o empresário e o Dr. Sócrates, aquele do calcanhar de ouro da Seleção de 82, antigas paixões da Fada, descansam sob a terra, e ela, na exuberância dos seus 74 anos, sem filhos, ainda afirma “Sou uma Mulher, preciso sempre ser amada”! 

Sexta-feira enluarada
Bem na sua encruzilhada
Um feitiço novo eu vou botar
Meu feitiço vai ser forte
Vai mudar a minha sorte
Vai fazer você de mim gostar

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