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Quarentena da vizinhança – José Alberto Silva

Quarentena da vizinhança - José Alberto SilvaA Quarentena Covid-19 prendeu em casa a vizinhança para fazer-se conhecer e conhecer a todos ao redor. Hábitos e costumes fizeram emergir a natureza de cada particular ou coletivo familiar. As descobertas surpreendiam como o desvendar de crimes hediondos praticados por gente com fantasias religiosas. Tempos depois, saber-se-ia tanto das aproximações como do alcoolismo, da violência doméstica, separações, abandonos.

Uma vizinha revirada nas coxas da madureza e montada em ancas malevolentes, parecia sempre em aquecimento de pré dança. Movimentava-se girando sobre si mesma com o traseiro empinado como um helicóptero ao alçar voo. Ao me cumprimentar com o cabelo molhadinho, parecia arreganhar-se em sorrisos que desabrochavam em cada partícula de seu ser. No entanto, nem olhava para a Rainha Doce ao se cruzarem ou quando esta estava sozinha na frente de casa. Eu e a Rainha Doce apostávamos há anos na extensão de seu destrambelho, o que sempre achei picuinha de mulher para mulher. Entendes? Sem maldade, sem malícia. Decretado afastamento social e esta vizinha nos ofereceu um pão de milho entregando-o nas mãos da Rainha Doce.

Uma família mudou recentemente para as proximidades. O pai se chamava Crisântemo, nego corpulento envelhecido no trabalho, a mãe era Dona. Flora. Tinham três ou quatro filhas com os nomes de Florindália, a Laura, a Marluce e a Irene. Tinha mais um adolescente chamado Zé Dilário, quieto, sestroso, neguim baixote e magrim daqueles que não olham direito pra gente como quem queira passar despercebido.

Tal família chamava minha atenção pelo vozerio intermitente. Eu acompanhava até as refeições que faziam. Chamavam “Pai” e “Mãe” e o primeiro nome que gravei foi o da Laura, sorrateira, teimosa, problemática, tanto se falava seu nome. Até o menino Zé Dilário como os outros que a censuravam em tudo que ela fizesse, falava asperamente com ela. “Chega de comer, Laura!”- Entre no banho duma vez, Laura!” “Tu estás gastando muita água neste banho, Laura!” Aonde tu vais sair agora, Laura?” ”Porque tu não vai dormir e nos deixa descansar, Laura? O dia inteiro e às vezes de madrugada a Laura preocupava a família. Eu tinha curiosidade e preocupação com ela, cujo perfil problemático indicava perdição.

– Olha só o que tu estás fazendo, Laura! – Dizia a Dona Flora em clima de pandemônio sempre com emoção como se estivessem a ponto de cair em prantos – Tu ainda vais matar de desgostos os velhos desta casa, Laura! Calma Cris! – gritava a mãe – Calma, pai! – gritava uma das filhas. – Calma! Esta tudo bem, Cris! Não vai acontecer isto de novo; não é mesmo, Laura? Tu prometes Laura? Chega de abuso! Chega! Tá bem? Não mais, Laura!

Semana passada houve uma correria naquela casa e uma das moças reclamava entre gritos e lamentos das ligações ao Socorro. Pensei em ajudar, indeciso entre a omissão e a intromissão. A desarmonia em função da Laura era característica que se observa em famílias com um membro envolvido com drogas, bandidagem ou coisa pior. Logo, no entanto, a família retomou conversas normais. Pensei que fora com o velho que se dera o incidente de saúde causado pela Laura. Naquela noite a Laura não conseguiu tomar banho sozinha. No outro dia se falava no incidente envolvendo a Laura que passara mal por seus abusos.

No dia seguinte ao recebimento do pão feito pela vizinha, a Rainha Doce correu até o Micro-ondas, esquentou o mesmo pão e o ofereceu enrolado num pano de prato à saborosa vizinha saroba, quando esta passou frente a nossa casa. Pelo vão das grades do Cadeião do Urubatã, onde estou cumprindo quarentena sob vigilância da Rainha Doce, eu espiava o diálogo truncado das duas. Admirada, a vizinha requebrada comentou que este pão quentinho ficara mais bonito do que o dela.

Alvoroço na casa do Crisântemo era uma constante, com variada entonação entre desespero, alegria festiva ou discussão. Certa noite, porém, o agito tomou ares de tragédia. O velho não estava e gritavam princípio de incêndio. Com meio pulmão fui o primeiro a contornar a rua e acudir a família em meio à fumaceira. Onde seria o foco do incêndio? Tudo não passara de uma rebelde panela de pressão mal educada que voando atingiu uma lâmpada que estourou e jogou cacos por toda casa que teriam que limpar e blá, blá, blá! A fumaça se dissipara e como prêmio por ter sido o primeiro a chegar ouvi esta historia várias vezes.

 – E a Laura? – Já irritadiço era tudo que me interessava.

 – Venha ver a Laura, seu Bunito! – Assim sou conhecido na vizinhança, em função do tratamento da Rainha Doce. E fazendo sinal para que eu a seguisse – A Laura como sempre achando graça de tudo.

Feito de bobo. Paralisado! Fiquei sem saber o que dizer ao ser levado a um quarto onde estava a Laura. A Dona Flora pensou que eu a conhecesse. Perguntei a idade da Laura.

 – Ela foi várias vezes à sua casa. Olha como ela é desaforada que nem olha pra gente – E dirigindo-se a Laura: – Não vês que estamos falando de ti, Laura?

Patético, perguntei pela décima vez a idade da Laura e a velha respondeu:

– A Laura, minha neta, é filha do Zé Dilário; uma doçura! Tem um ano e quatro meses. O Josué Dilário parece um guri mas é nosso filho mais velho. Quase quarentinha. Nego véio não mostra a idade. A mãe morreu e nós ficamos com a criança. Nossa família estava caindo quando a Laura chegou e nos salvou. Recuperei a fé nos orixás agora vistos como ancestrais que nos inspiram; as meninas voltaram a estudar; o meu velho Cris passou a levar a sério seu tratamento de saúde, tudo mudou aqui graças a Laura.

A Rainha Doce disse que a criança estivera várias vezes em nossa casa e que em todas as ocasiões eu estaria dormindo. – Dorminhoco! Depois daquilo a família da Laura me pareceu normal. Parei de ouvir o que diziam na casa deles e sobre o comportamento da Laura. Lembro que naquela noite juntando as coisas entre pães e doces, perdi o sono achando melhor não perder nada do que acontecia ao meu redor.

Soubemos que a vizinha suculenta, aquela cujos movimentos faziam balançar tudo em derredor como se a gente sofresse tontura de desmaio, havia morrido no outro dia depois que ganhou de volta da Rainha Doce seu próprio pão de milho. Na redondeza ninguém sabia dizer de qual de suas suculências ela morreu.

A Rainha Doce curte duas irmãs de coração que são brabas de furiosas. A brabeza Gritã é conhecida pela barulheira. Agora, a Silenciã! Já ouviram falar do silencio assustador de quem odeia de verdade? No outro dia depois da morte da vizinha desgraçada e a Rainha Doce passar um dia inteiro sem me dirigir palavra, logo depois da janta ela me ofereceu um cafezinho com um “bolo especial”.

Puxa! Incorporei o verdadeiro macaco desconfiado. O oferecimento deste café ela o fez me olhando fixamente e empregando nos olhos um brilho tão misterioso que nem na noite de núpcias ela havia me dado. Então eu fui enfático – Olha meu bem… não quero, tá? Não quero!

Quanto mais desculpa arranjava mais fixamente ela me olhava. Entesei! Não quis. No outro dia, no café da manha não lembrei, mas o bolo estava lá. Bem, estou aqui para contar, não é mesmo? Ou não estou?

José Alberto Silva

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