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Quarentena na cama – José Alberto Silva

Quarentena na cama - José Alberto SilvaQUARENTENA NA CAMA 

A Rainha Doce detesta refeições na cama. Eram 18 horas e ao andar da sala pra cozinha, senti friozinhos de enjoância. Reclamei ligeiro mal estar, coisa pré-gripal. Afinal me conheço, né? A cama sempre remete à sexualidade e seus desdobramentos de bem prazer ou de mal doença. Não se sabe no que vai dar quando se juntam as duas coisas.

– O quêêê??? – Gritou ela emergindo de uma letargia invernal.

Até me odeia, me manda pro inferno esperando que eu escorregue na frequência do Diabo de tanta vontade de sair pra rua nesta quarentena. Mas, se eu passo a considerar a ideia de passear no fogaréu, ela fica tonta sem saber o que fazer. Com ar contristado eu peço:

– Pegue o termômetro! – num movimento mágico de mulher mãe de filho único ela aponta pra mim nosso termômetro de mercúrio.

– Temos algum chá, nesta casa? – ela assentiu sacudindo a cabeça bem ligeirinha. – Estou com frio.

– Credo! Tu estavas assintomático! Te deita!

A partir daí todo o movimento da casa tem o sentido de salvar minha saúde. O rádio que tocava um samba rasgado, ela desligou. Com o braço na minha cintura me amparou até quarto. Finjo sonolência com olhos entreabertos. Ela saiu dizendo que ia fazer um chá. Pus meu “pijame” – como diria meu avô Iraldino – sabe aquele pano de bolinhas, puído que ela odeia mas que me aconchega? Setenta e tantos anos, grupo de risco, ela há de permitir minhas últimas vontades, até porque o meu médico diz que vou viver no máximo por mais 50 anos. Isto, diz ele, em plena potência, né? Passado esse lapso de tempo, pode ser que eu me arraste um pouco. Ela irrompe no quarto com uma xícara fumegante, cruzo os braços em sinal de friagem, fico quieto como garoto dependente. A preocupação dela com minha saúde é tamanha, quem vendo de fora pode-se pensar que é amor. Não, é o vírus. Passo o dia tomando colheradas de um chá requentado com alho, limão e pedra dengosa e álcool em geral.

– Te deita! Vou pegar outro cobertor.

No bate boca de precisa não precisa cobertor me enfiou meias de lã, apertou os olhos para ler o termômetro, deixou o quarto à meia luz, e julgando que eu iria dormir ligou a TV; me cobriu até o pescoço e saiu levando de volta a xícara fumegante alegando que traria janta duma vez porque eu não gostaria de tomar aquele chá. Segundos depois que ela saiu me livrei do cobertor visto que estava no inferno tal o calor que eu sentia. Recaia num soninho quando ela voltou com meu jantar e perguntou pelo termômetro apalpando-me até como quem procura tal instrumento num cachorro. Encontrou-o no chão e colocou sob meu braço. Eu já tinha bisbilhotado a janta na bandeja e com frágil voz perguntei com ares de doenças pandemônicas:

– Esta galinha tinha só uma coxa? Quem sabe mais batatas no meu prato?

– Ué! Gripado tu sempre perde a fome!

– Esta gripe é toda diferente! Vou me esforçar pra comer porque se eu piorar terei reserva de energia, entendes? Minha outra avó dizia que de comida boa ninguém tem fastio.

A Rainha Doce saiu prometendo novo chá e eu limpei o prato com a voracidade de um formigueiro. Ela voltou com sua xícara quente e me fez tomar; saiu e voltou com outra xícara mais quente ainda e me fez tomar e assim sucessivamente me dizendo tratar-se de diversos chás. Minha zona é o Urubatã, nos cafundós do Ipanema, Hípica, Belém Daqui e Delá, Juca Batista, Quebradas do Lami, Aberta Morros, Cidade Alta, Curvas da Serraria, Extensão Restinga, e, no meio de tudo isto tem um matagal, moro quase dentro. Um vizinho velho disse pra ela que “todo mato é chá”. A partir daí ela atravessa a rua e entende de fazer chá de qualquer arbusto. Pinheiro brasileiro, canela preta, branca e vermelha, babosa do campo, xaxim. Entre elas ao juntar plantas aleatoriamente deve ter levado punhado de algo que contivesse estricnina.

Ela voltou com sua xícara quente, me fez tomar; saiu e voltou com outra e me fez tomar. Comprovei de uma vez que de médico e de louco todo mundo tem um pouco. Chá da índia, chá da loira, chá da morena, chá da nega veia. O jantar vinha até a ponta da língua e voltava embrulhando minha buchada que doía. E ela trouxe outro chá. Eu sacudia a cabeça negativamente, ela mantinha a xícara entre meus olhos como se fosse uma arma de assalto. Queria que ela retornasse para sua complacência de inverno. Ora, até presos condenados a 200 anos, estavam sendo soltos, por que eu tinha que arcar com todas as consequências deste confinamento?

– Tá bem! Tá bem! Eu confesso! Não estou com vírus nenhum! Sou apenas o velho coroco com quase oitenta anos! – E eu repetia quase aos prantos: – Eu confesso! Tá bem! Eu confesso! Tu não visses, mas eu pisquei o olho pra mim mesmo quando tu falasses do meu jantar na cama. Só isto!

Ela continuava com a xícara apontada pra mim. Tem de tudo: bagaço apaixonado, amarguras de viúva, chá de acalma periquita. A minha ingenuidade não permitiu que eu visse malícia ou veneno nos seus chás de ervas daninhas.

– Confesso! Pronto! Tudo que eu queria era jantar na cama, só isto! Entendeu? Agora me deixe em paz!

Fiz um discurso masculinista militante – Tu nunca me permite! Eu não tenho liberdade de ficar deitado o dia inteiro! Aposentado! Lavo carro, lavo louça, eu não paro!  Tu não valorizas o que se passa comigo, os meus desejos mais íntimos de homem!

– Mentira! Meu Deus! tu tá variando em febre. Tu não tá dizendo coisa com coisa. Tu jamais falasses comigo deste jeito! Isto é febre. Eu chamaria tua mãe se ela fosse viva. Acho que vou avisar os filhos, chamar o SAMU, gritar para os vizinhos.

Acreditem: pensei que ela fosse chorar de verdade. Eu não sabia se caía na gaitada ou a mandava entrar num banho frio.

Só tem uma coisa: eu já estava me sentindo mal de verdade. Perdendo a graça de fazer piada com a quarentena muito menos com a doença e seus desdobramentos. Senti um embrulho no estômago como prenuncio de um pum, tipo retumbante ou um regurgitar por aqui ou por ali.

– Acho que não vai dar tempo! – eu gritei!

– Não vai dar mais tempo? – Ela começou de novo a falar em mãe, pai, avó! – Estamos nas mãos de Deus! – disse ela com veemência fervorosa como se esta constatação fizesse diferença na sorte de quem acredite ou não n’Ele. A morte não se negocia, Deus permite no entanto que o sofrimento pela saúde seja negociado pela diligencia da ciência ou da feitiçaria.

– Ponha uma vela acesa na minha mão! – Eu pedi. Quero um pouco de luz para partir.

Eu ainda achava graça naquela brincadeira que ela levava a sério. De repente, porém, para inverter todo brinquedo da coisa eu senti como que um soco no estômago e me retorci de dor. Eu falava aos sussurros que estava mal e ela falava ao mesmo tempo em pai, mãe, avó, velas para iluminar minha partida sem entender o sinal que eu fazia para ela sair do meu caminho, pois  me segurava na cama quando eu só queria me levantar e correr para o banheiro.

– Tempo pra que? – com a ponta do nariz suando a Rainha Doce começou a se dobrar de rir. Entendi que ela devia ter posto veneno pra formiga num daqueles chás ou em todos, e sua vingança estava próxima. Passei por ela segurando a respiração e em passos e movimentos contidos em câmera lenta tipo de um robô, enquanto ela apontada para a parte traseira de meu pijama de bolinhas. Eu precisava correr. À menor sujeira nas cuecas e eu acabaria notícia do JN. Se tu estás com prisão de ventre, meta o dedo na goela que solta tudo pela ânsia de vomito. No banheiro, baixei as cuecas vagarosamente e espichei o olho para ver o que haveria lá por dentro.

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