Reflexões sobre cálices, queijos e vinhos
Se na calada da noite eu me dano”.*
No começo dos anos 30, a tia-avó desembarcou na pequena e interiorana cidade. Trazia na destra uma pequena mala de lona e, segura na mão esquerda, a filha de ano e meio. Desquitada!
– Desquitada!!! – confabularam entre si em libidinosos murmúrios dos bem postados os “senhores”, chefes de família, defensores dos “bons” costumes, benemerentes e assíduos frequentadores da Santa Missa e das churrasqueadas dominicais dos centros de tradições.
– Desquitada!!! – tremeram as carolas, receosas e inseguras matronas, mirando o pândego e dissimulado patriarca, comodamente estendido na preguiçosa, disfarçando na leitura dos jornais.
– Filha de desquitada!!! – fora o bullying daqueles tempos de antanho que a menina tanto sofreria nas salas e nos pátios do colégio.
– Filha desquitada sob o teto de minha fazenda, não! Nem mesmo pra coalhar o queijo! – sentenciara o bisavô, guasca dos quatro costados.
No entanto foram do casarão de meus avós que se lhe abriram as primeiras e acolhedoras portas. Minha avó, mestra e diretora daquela que, alguns anos mais tarde, viria a ser a primeira Escola Normal do Estado, desafiara os olhares de viés das confreiras do corpo docente e admitiu a irmã como alfabetizadora.
A partir do Pós-Guerra, as mulheres foram gradativamente conquistando os justos e merecidos espaços: na família, na sociedade, no mercado de trabalho.
Em 1978 – com a promulgação da Lei do Divórcio – muitos dos tabus que amordaçavam eventuais direitos da mulher, no Capítulo do Direito de Família e Sucessões do Código Civil Brasileiro, viram-se na contingência de se adequarem ao novel regramento. As mulheres e os filhos oriundos de união adulterina tiveram, a partir dali, reconhecidos direitos que, até então, lhes eram inalcançáveis. Nas certidões de nascimento não mais constaria a pecha de “filho(a) ilegítimo(a)”. Concubinas, companheiras viram, com passar dos anos, a dinâmica das relações sociais e ante o iluminismo, sobretudo do Judiciário Rio-grandense, do advento da União Estável, plenamente reconhecida e amparada em Lei.
À violência doméstica insurgiu-se a Lei Maria da Penha.
O Direito de Sucessão aos bens do varão estenderam-se aos filhos havidos fora do matrimônio. Aquele mesmo direito, bem mais tarde, se estenderia nas relações homoafetivas.
Mas as minorias sociais, os diferenciados ainda permaneciam hostilizados pelo preconceito.
Vieram de dois ícones da luta pela igualdade de raças os mais contundentes libelos: – “Lutei contra a dominação branca e contra a dominação negra. Eu brindei o ideal de uma sociedade democrática e livre na qual todas as pessoas vivam juntas, em harmonia e em iguais qual eu espero viver e alcançar”. (Nelson Mandela); – “Aprendemos a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a simples arte de vivermos juntos como irmãos”. (Martin Luther King).
Então, neste assim pensar, por que seria diferente a retrógrada postura ante o reconhecimento legal da união civil e o direito de adoção por casais do mesmo sexo?
Não precisamos ser letrados em Sociologia ou Antropologia para que tenhamos, senão a grandeza e a capacidade de entender e aceita-los, ao menos respeitá-los em suas diferenças.
Não represento comunidade alguma, não sou presidente, ou membro de movimento social, cultural, tradicionalista; sequer síndico de condomínio. Portanto, quando me expresso, o único cálice a que me permito é o de um tinto de generosa safra ao alcance de minha mão. Ofereço somente a minha cara a tapa, e não a do vizinho, a dos companheiros de confraria, a dos colegas de profissão. Se minha postura e pensamento deixarem alguns poucos desconfortáveis e irados, eu “pago o mico”. E nem Juan Carlos I, o rei que já nem o é mais, terá a equivocada petulância de dizer-me:
– “¿Por qué no te callas?”.
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça”.
*“Cálice” – Chico Buarque de Holanda