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Ressurreição sem carne – José Alberto Silva

Ressurreição sem carne - José Alberto SilvaPai de muitos filhos sem muitos recursos materiais ou intelectuais para dar a meus filhos o padrão de consciência e orientação que gostaria de passar para meus descendentes, sabe Deus como esgaço meus limites.

Minha esperança segura era de que suas mães, por suas qualidades os ensinariam melhor e procurei não interferir até que eles próprios decidissem, eventualmente, me ouvir.

Em função disto, desde muito pequenos eles aprenderam a contar comigo somente em último caso quando eu os acolho carinhosamente sem julgamentos ou diferenciações.

Enquanto estão comigo dizem de seus sonhos, fazem planos e os ajudo como posso no preparo para enfrentarem a vida num mundo sempre pior que constroem com menor margem de erro.

Penso que seja consequência do amor desdenhoso que cultivam por suas próprias mães. Elas também fazem o melhor que podem. Como não guardo magoas de nenhuma delas gosto de ser justo com todas.

Caso meus filhos tropecem e caiam em suas pretensões, como sói acontecer com frequência ou suas ambições perdem o sentido, se desiludem ou lhes falta força e saúde para manterem suas vidas, muitas vezes envergonhados perguntam timidamente se podem vir passar alguns dias comigo com a desculpa de que estou velho e podem me fazer companhia, como se não soubessem que pai de muitos filhos não fico sozinho.

Dos tímidos pedidos passam para súplicas de plenos pulmões para dizerem que a saudade lhes corrói a alma, dizem abrir mão de tudo, que desistem do menor orgulho para estarem comigo. Até parece que querem meu perdão. Eu os atendo vez que meus esforços amorosos sempre tiveram origem na dúvida sobre minha dívida com eles como pai.

No cais do porto em Porto Alegre, na Avenida Mauá onde trabalhei na estiva por tanto tempo até os anos 60, pensava na minha própria autopreservação para acolher meus filhos quando precisassem voltar pra minha modesta casa. Moro sozinho e me alimento das frutas e verduras que todas as minhas mulheres – incrivelmente iguais me ofereciam – misturando sol e sal, açucares e condimentados pertencimentos do ar, do tempo e da terra.

Tenho filhos de várias etnias, com culturas diferentes e quase sempre antagônicas porque sistematicamente ainda sou fisgado, meio a força, apesar de minha força e tamanho de estivador das antigas, por mulheres de um mesmo tipo físico e psicológico. Submetido à minha pouca criatividade percebi haver sete tipos de pessoas que se repetem em todas as raças.

Se por um lado me atraiam, pelo mesmo conseguinte me deixavam se dizendo aridamente cansadas de si mesmas. Em mecânica repetição se não havia muita emoção quando chegavam como se me conhecessem de anos, não impunham sofrimento ao desvanecer como fumaça de queimadas.

Durando ao meu lado está a Suely de quem nunca peço mais do que a beleza de Rainha que ela ostenta em nossos dias e noites, agrega em sua gloria, qualidades culinárias, constante regeneração do nosso ambiente limpo e perfumado mais o carinho por meus filhos recebidos como se fossem seus.

Meus filhos, é neles que falo, sempre ganhavam mais do que eu como estivador, claro, em melhores condições como eu disse. Pois vejam: minha casa fica no alto do morro donde temos por limite superior e inferior o alto das constelações estelares ao fundo do mar; limites que vão de norte e ao sul parecendo que Porto Alegre é o Portal do Universo.

Eles voltam para minha maloquinha no alto do morro me surpreendendo quando deixam vazias suas mansões, terras e vassalos, patrimônios e matrimônios para virem parar aqui de pés descalços, olheiras chorosas, quando não trazem mutilações que nem sei como curar.

É nesses momentos que lembro os remédios mágicos que faziam suas mães com unguentos, benzidos, sopros, repousos e mistérios. Meus filhos jamais agradecem suas mães pela saúde, alimentos e travesseiros de descanso e paz que elas lhes oferecem. Não sei pelo que eles me tomam. Seguidamente me atribuem coisas e milagres que lhes repasso vindas de meu Pai Eterno.

Chegam chorosos e ajoelham rezas de amor e submissão pedindo que lhes aponte caminhos a seguir. Prometem mudanças e regenerações. Fazem planos, respiram encantamentos. Recuperados mostram digitais únicas entre trilhares para se dizerem filhos únicos, milagrosos, mirabolantes e desprezam minha conversa de bêbado. Pensam e vivem como se tudo tivesse começo e fim na vida deles e nesta vaidade do poder ao invés de passarem pela vida a vida passa por eles. A Suely olha pra eles com benevolência silenciosa, como a professora que recomenda releitura de um tema.

Sempre há, porém, o momento em que independente da condição boa ou ruim de vida deles preferem voltar à casa do pai. E voltam. Esquecem tudo que deixaram para trás. Chegam pedindo algo novo sem perguntar o que seja e eu lhes digo sempre as mesmas coisas sobre amorosidade. Concordam plenamente. Fazem diferente quando se vão com orgulhantes exceções.

Ao contrário de suas promessas conforme combinamos enquanto prostrados, ao saírem de minha casa não dividem o que levam por riquezas. Deixo que durmam dias à fio. Enquanto dormem fugindo de tudo que queiram esquecer e de fato esquecem, pensam estar curando as feridas de seus corpos como suas mães faziam.

Na verdade na minha casa o tratamento oferecido é pela recuperação de suas almas. Alguns rejeitam, de pronto, seus corpos, raça, peso, gênero pelos motivos mais banais Estes rejubilam desvestirem esses trajes fétidos, mutilados e remendados com que chegam aqui; outros, ao contrário, custam a crer no que não veem mais frente a um espelho, antes ostentados como belezas de algum talento encarnado.

A verdade é que recuperam a noção de liberdade. Passado o impacto inicial da chegada, desvencilhados de seus andrajos, ressuscitam sem carne, osso, raça, sem tamanho, costumes, sem cultura ou classe social. A quietude das noites bate em seus sentidos como bom pressagio a sugerir descanso e paz para cumprirem programação evolutiva cuja criação meus filhos pensam que é minha quando na verdade é do meu Pai Eterno.

Na liberdade que lhes dou conhecem seus tios, meus irmãos, uns mais criativos do que os outros, e que moram em outros morros na cidade, cuidam de seus mundos, trabalham suas vidas algumas mais avançadas, outras menos. Algumas vidas em constantes reformas ou aniquiladas estão sempre sendo refeitas.

Como meus filhos não são mais crianças e devem entender que também tenho um Pai Eterno a quem devo obediência, a quem recorro para manter acesas as luzes do meu quintal que meus filhos chegam aqui dizendo ser o céu porque é iluminado pela exuberância da Suely.

O que pensam ser um sol é apenas uma lâmpada ou várias em meu quintal e o mundo deles não passa de um dos muitos formigueiros neste terreno, isto é, montículos de terra úmida. Foi assim com dinossauros e tantas outras espécies desconhecidas por eles.

Não se dissemina em nenhuma cultura popular a ideia de que a diversidade e a unidade não são antagonismos da mãe natureza de uns contra a mãe natureza de outros. Um formigueiro envenenado mata tudo sem distinção. Portanto se sacrificarmos um lado, morrem os dois. Para mim meus filhos são todos iguais.

Antes de me preocupar com meus filhos e com o bem estar deles vou preservar a mãe de deles, envelhecida e cansada, exaurida. Ela precisa ser regenerada em seu esplendor e beleza para seguir chamada Natureza. Algumas coisas devem mudar neste meu quintal o que não faço há milênios. Vou trocar umas lâmpadas/sóis, por outras mais fortes.

Talvez um superaquecimento repentino possa fritar os miolos de todos eles de uma vez só e poderei repovoar a planície com os filhos dos meus irmãos que são parecidos mas não são iguais aos meus; tenho vontade de mandar um castigo forte como o afastamento da lua e das estrelas, quem sabe? Quem sabe uma doença cuja cura seja desconhecida pela mãe de todos eles?

Eu tinha bebido muito quando conversei sobre isto com a Suely, minha Rainha Doce. Com sua doçura disse que sou ranzinza, e como ela foi misteriosamente reticente desconfio que preparou alguns dos meus filhos, antes de saírem daqui, com a capacidade de resolver vários problemas. Não sei! Só sei que a humanidade deles se salva como irmãos ou se dana por inteiro.

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