Santherminia – Sérgio Agra
SANTHERMINIA – (Capítulo II de Balada para um Andarilho)
… as cintilações que emanavam dos grãos de areia como pequeninas estrelas…
Chovia muito naquela quinta-feira. São borja, itaqui, uruguaiana, alegrete e santana do livramento, províncias da fronteira oeste do rio grande, guardavam esperançosas de estiagem o dia onomástico de são pedro; o ano era mil novecentos e cinquenta e quatro. As nuvens carregadas e a fúria dos ventos emprestavam aos povoados ribeirinhos, de tão quietos e desertos, a aparência de cemitérios abandonados.
O brasil, em que pese atravessasse inquietante período de conflito político, esforçava-se em se descortinar perante as demais nações como o país do futuro, um país sério, plasmando sob a ótica da ordem e do progresso um estado democrático de direito, com o governo e o parlamento constituídos por políticos honrados, probos e competentes, voltados apenas para o bem comum. A promulgação da consolidação das leis do trabalho (clt), em 1º de maio de 1943, conferiu grande prestígio popular ao regime e em particular a getúliodornellesvargas, que fortaleceu sua imagem de protetor da classe trabalhadora. Nos anos que se seguiram as leis trabalhistaspassaram por sucessivas reformas e ampliações. Seu corpo básico, contudo, continuaria em vigência até aquela data.
Vinda de uruguaiana a continente I — a barca a motor de mestre veríssimo— havia enfrentado com valentia a correnteza dos rios uruguai e ibicuí. Escurecia quando finalmente a embarcação enveredou para o leito do rio ibirapuitã, por onde, após atracar por breves minutos no ancoradouro de santhermínia, alcançaria a cidade de alegrete, seu porto final.
Mestre veríssimo conhecia como ninguém os segredos de cada curva e das armadilhas daqueles rios. Há muito havia ele sublimado a revolta contra aquelas águas que prematuramente lhe tragaram os pais, num pacto de mútuo respeito. Sabia com precisão o momento de arrojar o batel no dorso dos vagalhões que se abriam em imensuráveis e assustadores desnivelamentos.
Da diminuta torre de comando, com o escasso auxílio de duas oscilantes lanternas a querosene amarradas à proa e ao cimo do mastro a título de faróis, ele concentrava toda a sua atenção no leito do rio e nos contornos da vegetação marginal que mal conseguia divisar. As rajadas de chuva açoitavam-no impiedosamente as faces feito chibatas. As mãos contraíam-se e os dedos crispavam-se ao timão como se firmassem o cabo de uma arma pronta para ser brandida no duelo com algum desafeto. E quem ousaria afirmar não fosse aquele um imenso duelo, um grande combate? Afinal, levava a bordo o valioso lote de vacina contra a febre aftosa ansiosamente aguardado pelos estancieiros da região. Transportava, sobretudo, vidas humanas, cada qual, como ele próprio, com seus sonhos, seus fracassos, suas esperanças e sua fé. Num átimo o pensamento navegou não o ibirapuitã, mas o distante e caudaloso rio que ele numa tarde já morrente avistara desde o embarcadouro onde se encontrava:
“Ouvi o clamor furioso das águas revoltas chocando-se contra o promontório. A ventania persistente provocava redemoinhos nas areias da praia. Foi então que ela surgiu, de repente, os pés descalços, envolta por negra, quase transparente, musselina na noite inda criança. Sem alarde isis cruzou o caminho de cada anônimo navegante sem se fazer notar, sem que eles percebessem sequer os lamentos que transbordavam de sua alma e do corpo ulcerado. Impossível, no entanto, ocultar-se por muito tempo nas sombras do anonimato. As luzes do cais e dos letreiros das tabernas refletidas nas pedras úmidas brilharam como refletores de uma cena teatralnum palco onde ela era o cisne em seu bailado de morte. Ela bailava… Bailava com delicados e suaves passos sobre os grãos de areia da praia que cintilavam como pequeninas estrelas. Testemunhei em respeitoso silêncio a misteriosa coreografia. Isis era sublime em sua negação da Morte. Não revelava o desespero ou, paradoxalmente, a submissão dos desenganados perante o inevitável. Firmava a certeza de que jamais haveria a entrega sem o derradeiro combate. Os braços, tais asas tremulantes, adernavam com extremo esforço, tolhendo qualquer tentativa da Traiçoeira em roubar-lhe a altivez. Ela bailava… bailava… Com discrição deixava para trás a aldeia, os vícios, as mentiras e a hipocrisia dos homens a quem por fugazes momentos amara. Na margem do rio isis olvidou as dores e os sofreres. Com o coração em transbordamentos de alegria e de encantos abandonei a estase em que até então me mantivera e em tresloucada corrida lancei-me na direção da graciosa visão.
Isis, agora sim, era um belíssimo e inalcançável cisne”.
Como se com tal gesto pudesse abrandar todas as tristes recordações e apagar as cicatrizes que trazia na alma mestre veríssimo prescindiu da mão esquerda na roda do leme e com vigor esfregou os olhos congestionados, redobrando seus cuidados para com as águas do ibirapuitã. A torre do comando encimava uma peça de diminutas dimensões e desprovida de qualquer conforto, destinada para o carregamento de mercadorias contrabandeadas da argentina a pedido dos atacadistas. Ali também se ajuntavam alguns poucos que se encorajaram empreender viagem numa noite tormentosa como aquela. O velho navegante disso sabia. E ali estavam eles, anônimos aventureiros, aninhando-se como podiam do frio e da umidade que traspassava o madeiramento do cubículo: um casal de colonos e seus três ranhosos ‘barrigudinhos’ parcamente agasalhados; assentadas sobre uma arca de couro desgastado duas paraguaias, os cabelos oxigenados, mal-ajambradas em justos e decotados vestidos de cetim, fumavam compulsivamente cigarrilhas que empestavam ainda mais o ambiente. Elas dividiam entre si o calor de um puído cobertor; em pé, sustendo-se no batente da vigia, tiritante de frio e temor ante o dilúvio que parecia não ter fim, o frade franciscano josejoaquínabadía. Mestre veríssimo, sem desviar os olhos do leito revoltoso do rio, inclinou-se e apanhou uma garrafa de canha, cheia até a metade, de onde sorveu um longo trago para se aquecer. Ele tinha consciência de que no íntimo era para apagar inutilmente a imagem de isis, A Guerrilheira.