Colunistas

Sobre a gripe A

Estimadas irmãs, estimados irmãos em Cristo:

    Saúdo-os com a palavra da Epístola aos Hebreus (11.1) que é também o lema desta semana: “A fé é a certeza das coisas que esperamos e a prova de que existem coisas que não podemos ver.” Esta palavra por certo não foi escrita em face de uma epidemia, como a atual que grassa não apenas entre nós, mas já alcançou mais de 160 países. Mas ela foi escrita, isso sim, a uma comunidade que experimentava o sofrimento, em seu caso advindo da perseguição religiosa. A epístola anima a encontrarmos na fé conforto, esperança, novo ânimo e forças renovadas.
    Estamos enfrentando a epidemia da gripe A, também chamada de gripe H1N1 ou, mais popularmente, de gripe suína. Os noticiários, a cada dia, nos relatam acerca de novos casos e também de vítimas fatais, entre elas preponderantemente pessoas que sofriam de algum mal ou se incluíam nas categorias de risco, mas algumas também que gozavam, ao que tudo indica, plena saúde. Na medida em que os casos se multiplicam, o sistema de saúde também fica submetido a pesadas demandas, revelando suas fragilidades e não podendo corresponder de todo às necessidades de atendimento, prevenção e tratamento. Surgem também orientações por vezes desencontradas entre autoridades públicas. Tudo isso gera incerteza, angústia e medo em meio à população, também em nossas comunidades.
Que fazer? Em particular o que fazer com as programações em nossas comunidades, sínodos e igreja? Devemos dar prosseguimento a elas, transferi-las ou cancelá-las? Como ficam nossos cultos e ofícios, sobretudo a celebração da Ceia do Senhor? E nossas reuniões e assembleias? É parte de nossa responsabilidade pastoral dar respostas a essas perguntas e a outras de cunho semelhante.

Considerações preliminares
Antes de proferirmos algumas orientações mais específicas, é preciso fazer algumas considerações de base.
1. Além de algumas orientações de cunho geral concernentes ao cuidado preventivo, cada lugar terá suas próprias peculiaridades e graus de exposição ao vírus H1N1. É perfeitamente legítimo e, mesmo, necessário, que sínodos deem orientações próprias de acordo com a sua realidade, como vários deles já estão fazendo. Também as paróquias e comunidades deverão exercer o discernimento próprio para suas circunstâncias locais. Essas realidades particulares permitirão, legitimamente, que se tomem decisões também diferentes das orientações de cunho mais concreto compartilhadas mais adiante. Tomem, porém, em consideração as ponderações aqui efetuadas.

2. Há que considerar que enquanto não houver uma vacina eficaz ou a gripe tenha completado seu ciclo de disseminação, deveremos, de uma maneira ou outra, conviver com ela. Nenhuma medida poderá evitar de modo absoluto o contágio, embora possamos e devamos fazer esforços de prevenção. Estes não evitarão a propagação, mas poderão reduzir seu alcance e sua rapidez. Como o inverno e os ambientes fechados são mais propícios ao contágio, há esperança de que, passado o maior rigor do frio, em particular nos estados do sul, o ritmo da propagação se torne mais lento. Mas devemos também ser realistas: ele não cessará de todo, e o vírus H1N1 tem revelado possuir uma elevada capacidade de propagação.

3. Os casos de vítimas fatais são obviamente preocupantes e lamentáveis – e requerem o cuidado pastoral para com as pessoas enfermas e as respectivas famílias, eventualmente enlutadas. No entanto, devemos ter em conta também que na grande maioria dos casos a enfermidade transcorre de maneira tranquila para a total recuperação da saúde. Assim, a postura adequada é a de assumir procedimentos e tomar medidas de cautela e prevenção, mas sem contribuir para a geração ou o incremento de pânico entre a população.

4. Como o confinamento das pessoas é inviável e tampouco é humana e socialmente desejável, salvo por tempo limitado para aquelas pessoas que contraíram a doença ou em relação às quais há suspeitas médicas de que possam tê-la contraído, deve haver o empenho em favor de medidas que sejam úteis na prevenção, sem lesarem profundamente o convívio social e a comunhão entre as pessoas. Medidas por demais radicais podem dificultar o cenário, em vez de fazer adequadamente frente aos riscos inerentes à epidemia.

5. Deve-se seguir as recomendações que as autoridades da saúde estão dando, adaptando-as para a realidade das atividades eclesiais. Não se deve ignorá-las, como se fossem desnecessárias ou absurdas (ou, pior, na suposição errônea de que, como pessoas de fé, estaríamos particularmente imunes aos riscos da enfermidade). Mas também se deve resistir à tentação de criar normas próprias, mais rígidas do que as recomendadas pelas autoridades da saúde, na presunção igualmente equivocada de que essas medidas isoladas mais rígidas poderiam nos dar proteção mais eficaz. Uma dificuldade extra teremos quando houver contradição entre orientações de autoridades federais, estaduais e municipais. Algumas decisões, aqui e acolá, parecem denotar  mais precipitação do que responsabilidade. Se bem que circunstâncias locais possam sugerir medidas específicas, em princípio deve-se procurar seguir as orientações nacionais, de um modo geral calcadas em recomendações da Organização Mundial da Saúde. Uma proliferação de medidas locais, conflitantes entre si, em nada contribuirá para o enfrentamento eficaz de uma epidemia que não é local, mas atinge, em maior ou menor grau, a todas as localidades. Em tudo, deveremos manter a sobriedade e buscar o que é razoável.

6. Do ponto de vista teológico, reconhecemos toda e qualquer enfermidade como um desafio ao cuidado que devemos ter para com todas as pessoas, criaturas amadas por Deus. Jesus, em seu ministério, demonstrou particular cuidado para com as pessoas enfermas, restituindo a saúde a não poucas delas e reinserindo-as no convívio social. Rejeitou a noção de que as doenças fossem causadas pelo pecado pessoal dos enfermos ou de seus pais (João 9.1-3). Portanto, devemos rejeitar toda e qualquer pregação que enfatize ser a doença resultado do pecado das pessoas enfermas. As pessoas nessas condições necessitam solidariedade e conforto, não acusações. Tampouco vemos qualquer fundamento bíblico na concepção, lamentavelmente bastante propagada, de que as doenças, em geral, fossem resultado da ação de demônios ou de Satanás. Devemos, antes, ver na doença e no sofrimento por ela causado, um chamado a debelar as enfermidades ou limitar seus efeitos danosos, num espírito de misericórdia, compaixão e cuidado para com nosso próximo. Apoiamos os esforços da medicina, dos corpos médicos e da saúde na cura e na diminuição das dores, bem como o empenho dos gestores públicos em orientar adequadamente a população a adotar medidas que auxiliem na prevenção.

7. Como igreja, oferecemos o acompanhamento pastoral às pessoas enfermas e seus familiares. Não devemos, tampouco, deixar passar a oportunidade de refletirmos com as comunidades sobre nossa condição humana e o sentido da vida. Como seres humanos, estamos sujeitos a enfermidades e, em definitiva, à morte. Em momentos como estes, somos recordados de nossas limitações e vulnerabilidades, bem como da transitoriedade da vida. A doença é uma ameaça à vida, e a cura um fortalecimento para a vida. Enfermidades prolongadas limitam seriamente a qualidade de vida; contudo, não raramente também despertam para dimensões positivas da vida até então não detectadas ou negligenciadas. Ademais, a enfermidade nunca é um episódio que afeta apenas individualmente as pessoas, quando adoecem. Ela também atinge o tecido social e as relações humanas. Ela “perturba” a convivência, mas também é oportunidade ímpar para exercermos o cuidado para com a vida e de umas pessoas para com as outras. Em diálogo com Deus, em oração, pessoas enfermas podem até mesmo encontrar, positivamente, uma possibilidade e finalidade oculta em sua condição. Não caberá, porém, a outras pessoas, muito menos ao conselheiro espiritual, sugerir possibilidades desse tipo, mas devem limitar-se ao apoio solidário, à palavra amiga, à proclamação da graça divina e à intercessão.

8. A ocorrência de enfermidades e o seu tratamento fazem parte da luta pela vida. A enfermidade e suas demandas podem estressar as relações familiares, mas também podem, inversamente, estreitá-las. O surgimento de uma epidemia, como a da gripe, pode levar as pessoas a restringir seriamente suas relações sociais, como pode também levar a sociedade a aprofundar seus compromissos de comunhão e solidariedade mútua. Em sua pregação, a igreja deverá auxiliar a que as possibilidades positivas aqui mencionadas sejam fortalecidas e as negativas combatidas.  Por fim, ela animará à fé e à confiança em Deus, ao proclamar que o sentido de nossa vida não se limita aos dias entre nosso nascimento e nossa morte, mas repousa no próprio Deus que nos criou, “nos chamou pelo nosso nome” e nos acolhe em seu reino. “Na verdade não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir.” (Hebreus 13.14)

Algumas orientações
Cito, por particularmente felizes, algumas passagens da carta pastoral emitida pelo Pastor Sinodal Nilo O. Christmann, do Sínodo Rio Paraná:
“A comunhão caracteriza a igreja de Jesus Cristo desde a sua origem. Também nas comunidades do Sínodo são marcantes o convívio, os cultos e os encontros em grupos. Além disso – brasileiros que somos – o nosso convívio é expresso pela afetividade, pelo abraço e pelas orações de mãos dadas. O momento de comunhão por excelência é a celebração da Ceia do Senhor. Neste ponto, a IECLB sempre orientou, justamente, para formas de celebração que valorizassem a comunhão (o coletivo).”
    “Contudo, se o convívio e a proximidade caracterizam as nossas comunidades, também a responsabilidade diante da vida marca o nosso testemunho. Os desdobramentos da Gripe A ainda são incertos. Sabemos, sim, que o momento requer o nosso cuidado e que, possivelmente, à medida que vierem dias de mais calor, a propagação do vírus deve diminuir muito.”
    Nesse espírito, efetuamos as seguintes considerações e recomendações, sempre com a ressalva de que sejam avaliadas no próprio contexto e, então, tomadas as decisões que pareçam razoáveis e responsáveis, que fortaleçam o cuidado e reduzam o medo.

    1. Eventos especiais de larga abrangência e participação, como dias da Igreja e assembléias sinodais: é razoável que sejam suspensos ou adiados para um momento mais oportuno, passado o inverno rigoroso que temos tido no Sul. Vários sínodos já tomaram decisões a esse efeito. De outra parte, não parece ser adequado suspender de maneira generalizada toda e qualquer reunião comunitária ou eclesial. Estas, em sendo mantidas, devem ser acompanhadas dos cuidados gerais recomendados em todas as circunstâncias: lavar as mãos, não compartilhar objetos, buscar ambientes arejados, etc. 

    2. Ensino confirmatório e culto infantil: é razoável que sejam suspensos ali onde também haja prolongamento do período de férias escolares e enquanto este recesso durar.

    3. Cultos regulares: a sua eventual suspensão deveria ser avaliada com muita prudência e adotada só em localidades particularmente expostas a riscos de contágio e desdobramentos graves. Há que se considerar, como referido acima, que, ao que tudo indica, ainda deveremos conviver com a gripe A por um bom tempo. Se os cultos regulares são suspensos, qual será o momento justificado para sua retomada? As pessoas não continuarão temerosas de participar dos cultos? Examine-se, pois, a possibilidade de sua realização em horários de menos frio, mantendo janelas e portas abertas, com duração menos prolongada, suprimindo-se transitoriamente o abraço da paz e, mesmo, os cumprimentos pastorais com aperto de mão antes e após o culto.

    4. Celebração da Ceia do Senhor ou Eucaristia: não é de nossa tradição confessional distribuir apenas o pão ou a hóstia, mas tanto pão quanto vinho. Evite-se, porém, na atual situação, o oferecimento do cálice comum. É sugerida a forma de intinção, isto é, as pessoas comungantes recebem a hóstia na mão e umedecem uma parte dela no vinho (no cálice) e a levam à boca. O risco, pequeno, de que as pessoas venham a colocar os próprios dedos no vinho, pode ser prevenido com instruções claras a esse respeito. Em algumas comunidades já é prática corrente o uso de cálices individuais. Esta é uma modalidade adequada na atual circunstância, embora o emprego do cálice individual favoreça a interpretação individualista da Ceia, ao reduzir a simbologia da comunhão entre irmãos e irmãs na fé. Em qualquer hipótese, recomenda-se que os pastores e pastoras, bem como todas as pessoas que participem na distribuição da Ceia, lavem as mãos com álcool gel antes e após a Ceia.

    5. Outros ofícios: é recomendado que o pastor, a pastora ou a pessoa encarregada de outros ofícios, dialogue com as pessoas, famílias e comunidades implicadas acerca da ocasião propícia e da modalidade adequada para a realização de ofícios eclesiais. Contudo, devemos ter presente que o cuidado pastoral e espiritual é inerente à nossa vocação e responsabilidade, não devendo ser colocado de lado por razões de conveniência ou temores pessoais. Por exemplo, seria gravemente equivocado recusar ou, mesmo, restringir o acompanhamento pastoral em sepultamentos. Igualmente somos devedores do acompanhamento pastoral a pessoas enfermas  e seus familiares (salvo em caso de restrição médica), mas com o devido cuidado, como o uso de máscara e a lavagem das mãos. Em todos esses casos vale a exortação apostólica: “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei.” (Romanos 13.8)
   
Concluo, citando mais uma vez o pastor sinodal Nilo O. Christmann: “Enfim, que possamos neste momento exercitar a prudência, a cooperação, a solidariedade e a oração. Acima de tudo, permanece a confiança de que em tempos de apreensão Deus continua nos segurando pela mão.”

Porto Alegre, 12 de agosto de 2009.

Fraternalmente,

Walter Altmann
Pastor Presidente

Comentários

Comentários