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Te cuida, Tony Ramos! – Sérgio Agra

Te cuida, Tony Ramos! - Sérgio AgraTE CUIDA, TONY RAMOS!

Pudesse Tony Ramos conhecido Theophilo Pereira Agra, meu pai, o ator o teria guardado sobre um pedestal como o maior de seus amigos.

Entre os anos 1968/1970 atuei no Grupo Teatro Novo Porto Alegre.Foram mais de centena de apresentações da peça A Fossa entre a capital e o interior do Estado. Em Porto Alegre o grupo atuou desde o Theatro São Pedro, passando pelo Salão Paroquial da Vila Maria Degolada e, pasmem, até o Presídio Central. À época os apenado eram “boa gente”.

Por ser um texto de cunho político-social tivemos, a poucos dias da estreia, a cordial visita dos gentis cavalheiros da Censura Federal; Agradecendo a calorosa recepção, aqueles agentes da repressão nos retribuíram  arrancando não poucas páginas do script original. Ronald Rade, autor e diretor, em apenas uma madrugada, consertou o estrago e em quatro dias ensaiamos o texto então alterado.

Ao retornar da apresentação na cidade de Alegrete comentei com meu pai que aquele final de semana havia me rendido o cachê correspondente a dois meses de salário que eu recebia por meu trabalho no IPE. O pai, com toda a calma e paciência, suas características marcantes, “intimou-me”, Amanhã o senhor há de se matricular no cursinho pré-vestibular. “Estudante profissional” em minha casa, não, senhor! Como se fora um retardado mental exclamei, Hã?… Sem dar tempo para contestações ele cobrou, Já sabes que faculdade tu irás cursar? Acompanhei por mais de minuto o voo de uma mosca tonta em torno da luminária e ele insistiu, E, então?… Voltei à realidade, Ah, sim… Direito (acho)… Foi então que meu pai salvou a carreira de Tony Ramos.

Há exatos 50 anos, no sábado, 20 de junho, eu me encontrava na cidade de Bom Jesus. À noite eu receberia o Prêmio de Melhor Ator no Festival de Teatro de Bom Jesus, troféu que me seria entregue pelo Embaixador Paschoal Carlos Magno, o grande mecenas das artes cênicas.

A peça contava a história de um operário desempregado cuja filha de oito anos estava entre a vida e a morte, sem qualquer perspectiva de obter vaga em leito hospitalar. A menina roga ao pai a boneca que ela vira na vitrine de uma loja. João, no desespero, rouba a boneca e é apanhado em flagrante. O proprietário do comércio, diante da imprensa ávida por sensacionalismos e na falta do que noticiar — os jornais também sofriam censuras —aproveita-se para fazer gratuitamente o seu comercial, decide não apenas perdoar o pai como ceder-lhe a boneca. Quando João chega a casa a menina já havia falecido. A família sequer contava com dinheiro para as despesas do enterro.

É aí que entra em cena minha personagem, o Beto, um gigolô e dublê de traficante. À custa de suas “protegidas”, ele consegue a quantia necessária.

Quando se ensaia durante dois/três meses e encara-se a estreia se desconhece qual será a reação do público ante as cenas que se sucedem. Por isso, jamais esqueci o diálogo do Beto com Maria, sua irmã e mãe da defuntinha, quando ele traz a grana para o enterro. Maria o olha com asco e diz,Beto, dinheiro sujo, dinheiro das putas? E Beto responde, E daí, o valor é o mesmo! — Pra quê? A plateia vem abaixo em gargalhadas piratas, pegando o elenco todo de surpresa.

Em outro  quadro, João apanha uma faca para assaltar um mercadinho para com o dinheiro ao menos pagar uma parte  do caixão. Beto se joga contra o desesperado pai e lhe arranca a arma. João, tentando se desvencilhar, acerta-me acidentalmente com violência o nariz. As lágrimas jorram e a primeira “deixa” deveria ser minha. Salva-me o Padre da comunidade que improvisa por quase dois minutos um “monólogo de socorro”, Estás machucado, meu filho? Quem sabe não foi isso o sinal do Divino, o Todo Poderoso, para que tu refaças a tua vida? Acho que deves aproveitar esse gesto que tiveste e retomar o bom caminho. Logro recuperar o fôlego e prossigo.

De outra feita, a cena se passa à porta do casebre, em meio à madrugada de velório. Um vizinho traz pão e linguiça. Esses alimentos eram comprados momentos antes da apresentação. Estávamos em Bento Gonçalves, e próximo ao clube onde se faria a representação havia um pequeno boteco. O contrarregra era o encarregado de todos os preparativos. Pois bem, o diálogo é o de Beto e Juca, o vizinho que trouxera a linguiça. A “deixa”, entre mordidas de linguiça, é a pergunta que eu deveria fazer ao Juca, E, então, a grana deu pro caixão? De repente mordo a pimenta ardida do embutido. Engasgado, pergunto,Porra, Juca, não tinha uma linguiça melhor pra trazer? Ante o inesperado do “caco”, fora a vez do Juca se engasgar e expelir os nacos que mastigava. A plateia percebendo que houvera ali um improviso desanda em risadas.

Voltemos a Bom Jesus. No domingo, após a entrega do prêmio, saímos pouco mais das 9 horas rumo a Porto Alegre a bordo da velha Kombi do pai do nosso diretor, o “trailer” das nossas turnês interioranas. A cada dez minutos eu olhava os ponteiros do relógio que pareciam girar mais rápidos do que a correia do acelerador do utilitário. Eu estava com o pensamento todo voltado para o ginásio de esportes do Colégio Rosário onde, numa tela cinematográfica, seria mostrada a final do Campeonato Mundial de Futebol de 1970, o ano do Tri Campeonato.

Brasil 4 x 1 Itália.

Após o apito final restou sairmos em alegres bandos pela Avenida Independência, Rua da Praia e Borges de Medeiros espantando as imagens do morticínio que fora a Era Médici e vomitando aquela marchinha imbecil, “Noventa milhões em ação / Pra frente, Brasil, do meu coração. De repente é aquela corrente pra frente / Parece que todo o Brasil deu a mão…”.

Deu a mão, uma merda!!!

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