Um outro ensaio sobre a cegueira
Eu contava quarenta anos de idade. Isso parece ter sido, ontem, ao dobrar uma esquina, ao virar a página de um livro, ao sorver o mais generoso dos vinhos. Fora, em realidade, quando entorpecido e sem qualquer reação, permiti ao mais recôndito sonho ser devorado pelas chamas do tempo.
O tempo é o mais inclemente dos incêndios e, afinal, não deu para salvar tudo.
A persistir essa paralisia, não há de muito tardar, chegarei aos oitenta, portador da pior das cegueiras: a intelectual. Aí, então, nada ficará a salvo.
“Zé do Bonde Errado”! Era como chamávamos um companheiro dos folguedos infantis. Jamais uma alcunha definiu tão bem o apelidado. Na realidade, em determinados momentos somos, nós mesmos, “zés do bonde errado”. Ou em muitos momentos! Por isso, o que estou fazendo, por vontade própria, naquele filme de cenário desolador e de tantas e tantas mentes áridas em meio às quais resolvi atuar?
Purgar culpas de atos tresloucados de um filme já finalizado? Iludindo-me em ser o herói de uma história cultural extremamente ficcional que na aldeia onde (sobre)vivo, corre o risco de jamais vingar?
O que consola é a não perpetuidade das penas e o futuro direito de libertação, antes da ameaça de uma cegueira irreversível, da conscientização do caos total.
Todos esses bruxos e fantasmas que ora invadem meu pensamento não são frutos do imponderável. Eles lá estão, no marasmo, sobretudo o intelectual, o cultural, que assola uma imensa maioria (Quem prestigiou a Feira do Livro da cidade? Quem comprou excelente literatura, que não fosse autoajuda? Quem assistiu a uma única peça das “Quartas-Feiras Teatrais”, na Casa de Cultura Érico Veríssimo? Quem adquiriu obra de escritor, artesão ou artista plástico que resida e acredite em Capão da Canoa?).
Lá, circulam semanalmente mais de três jornais locais com articulistas de todos os gêneros e estilos. Quem, efetivamente, os lê? Outros próprios articulistas? E os tão-somente leitores, com eles concordam? Os contestam? Os detestam? Se a coluna não é remunerada, o que seria mais do que justo em favor de quem a escreve, mereceria, por que não, ser comentada – favoravelmente ou contra, isso não importa! Seria (o comentário) o reconhecimento de quem lê àqueles arquitetos de idéias e palavras: o escritor.
Gesto que nenhum dinheiro encoberta. Nem mesmo a cegueira cultural e intelectual que se abate sobre a comunidade!