Colunistas

Muito além da última duna

Adoniran entrou no quartinho onde o filho dormia e aterrorizou-se com o quadro que viu: naquela madrugada chuvosa de agosto, Piragibe, a cabeça imersa no mar de sangue a jorrar-lhe das narinas e gengivas, delirava. Ato contínuo, o pai envolveu o corpo frágil do menino sob dois cobertores, apanhou-o no colo e iniciou, nos cafundós de Arroio Teixeira, a longa e difícil viagem a Capão da Canoa em busca do socorro.

– “Piragibe, pel’amor de Deus, filho, o quê foi? O pai não tá conseguindo te entender. Então, não diz nada, não fala mais nada, o pai segura esta. De madrugada, com este aguaceiro, ninguém põe o nariz pra fora da porta. Güenta as pontas aí, guri, fica firme que o velho aqui não vai te sacanear. Pode crer, filho, logo, logo vamos chegar na Estrada do Mar. De lá pra diante a coisa fica mais fácil. Eu devia desconfiar.

De dois dias p’ra cá, tu andava jururu. Tu não é disso! Agora tô atinando as coisas. Bem que o Araújo contou, lá no bolicho: “Tem ninhada de taturana lá pros lados do Curumim”.

É aonde tu joga pelada, n’é, moleque? Foi isso, não foi? Diz pro pai… Taturana é bicho ruim, queima de morte. Mas tu não vai morrer, que nesta nós ‘stamos abraçados. Mostra p’resses bichos de merda que tu é macho! Deus tinha que mandar, logo hoje, este dilúvio cá p’reste fim-de-mundo? O vigário disse que é p’ra lavar a alma dos injustos, dos políticos safados, gigolôs de empresários que “bancam” campanhas, praqueles, depois, ficarem só nas promessas de palanque, só que, aí, filhinho, o Divino bota todas as gentes na mesma canoa. É, então, que temos que mostrar p’resses velhacos que ainda somos fortes. Não sei como não me perco, a chuva me cega, bate feito chicote nos meus olhos. A areia das dunas me engole toda a perna. Tô bufando, n’é mesmo?

É do pito, que este não consigo deixar, inda que faça o caminho parecer cinco vezes maior. Não me aparece um vivente p’ra dar uma ajuda. Calma, Piragibe, agora o pai vai até o fim. Na estrada vai aparecer um caminhão, uma patrola, uma carroça, sei lá, até carrinho-de-mão, qualquer troço, porque agora tudo vale. O que tu não pode é te entregar, filho. Olha, já consigo ver a luz dos faróis dos carros. Um tempão p’ra andar o que a gente leva quinze minutos. Mas, agora, vai! Não passa ninguém nesta maldita estrada? Todo mundo tirou a noite pra ficar em casa? Calma, Piragibe, fica firme, alguém vai ter que vir. A gente chegando na Estrada do Mar a coisa fica mais fácil. Lá tem um posto da Polícia Rodoviária. Tu tá botando mais sangue p’ra fora, meu moleque? Pobre animalzinho, como tu deixou isto acontecer? Diz p’ro pai, o velho só tá escutando o teu ronco, Piragibe, ou será que é algum carro? Que nada, filho, é minha a ronqueira. Tá me faltando o ar, tudo por causo do cigarro e da canha, vícios bandidos. Mas já te disse, o Adoniran vai nem que seja até os quintos do inferno. Te prometo por tudo que me é sagrado neste mundão de Deus, quando a gente sair desta, não ponho nem palheiro na boca! …O que é isso? Tô escutando o trote de um cavalo… Será alguém indo pros lados de Capão?… Não tô tendo alucinação, não!… Tá cada vez mais perto…”.

– “Cumpadre Cerqueira, cumpadre Cerqueira… pel’amor de Deus, me ajude…”.

– “Se abolete, cumpadre Adoniran. O que foi com o meu afilhado?”.

– “Taturanas. O coitadinho tá botando sangue até pelas ventas”.

– “Isto é sério, Adoniran, muito sério…”.

As águas das lagoas avançam sobre o leito da estrada impedindo o fluxo do trânsito.
 
– “Cumpadre Cerqueira, até o Eterno tá contra mim! Mas que porra de vida é esta? O moleque botando sangue por tudo que é lado, não dizendo coisa com coisa, e esta merda de caminho se sumindo na minha cara!”.

– “É p’ra ver… Nos meus quinzes anos de estrada nunca peguei alagação. Mas fé, cumpadre Adoniran, fé que Ele não é “padrasto”!”.

– “Se é uma peça que o Divino tá querendo me pregar, que então venha! E tu, Piragibe, güenta um pouco mais, que nós chegamos lá. Acredita no velho Adoniran, moleque, acredita! Olha! Vê aquelas luzinhas? É de Capão da Canoa. Te segura, Piragibe, que lá vamos nós!”.

– “O quê? Um hospital desse tamanhão, sem um médico de plantão? Mas o que esses bundinhas pensam, só trabalham de dia e quando faz sol? É porque não tá doendo no deles”.

– “Não se desespere, cumpadre Adoniran, tem um outro hospital perto daqui. Vamos p’ra lá. Vamos logo”.

– “Mas que porra de greve é esta?”.

– “O senhor tem que entender, nós também temos família pra sustentar. A prefeitura e o IPE não reembolsam as despesas, só nos resta o direito de greve. Sinto muito, companheiro”.

– “Tu não sente nada, cara! Feliz de ti que tu tem esse emprego. Aposto que tem um montão de gente querendo o teu lugar. Queria te ver passar o que eu tô passando. Tu ia odiar a greve, cara, escreve isto… E agora, cumpadre Cerqueira?”.

– “Tem um outro, mais longinho, mas, quem sabe?”.

– “Onde, cumpadre?”.

– “Em Osório…”

– “O senhor vai ter que entrar naquela fila e esperar abrir o guichê, para apanhar um ficha numerada e…”.

– “Tu não é mãe, tá na cara! O molequinho se finando aqui, e tu me manda p’ruma fila do SUS? Eu tô pagando, minha senhora, eu tô pagando! Tá aqui, ó, ó!”.

– “Ah, porque o senhor não disse logo? Agora pode passar. É só apanhar o corredor à direita e vá em frente!”.

Na enfermaria, silenciosa e vazia, Adoniran sustém apenas os cobertores encharcados. Na maca, Piragibe parara de respirar.

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