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Meu pai

Para Theophilo Pereira Agra, in memoriam

Nosso diálogo, algumas vezes, mostrava-se difícil. Separávamo-nos magoados. Falávamos em linguagens diferentes.

Recusavas-me o teu automóvel, imaginando que eu pudesse sair pelas ruas feito doido, atropelando meio mundo. Restava-me, pois, passear com o carro às escondidas, o que me custou muitos bailes e festas.

Decidiste com que eu, aos dezessete anos, transferisse os estudos para o turno da noite e trabalhasse durante o dia, para não correr riscos de me tornar ginasiano profissional.

Horrorizava-te o fato de saber que eu, naqueles cinzentos anos sessenta, participava das greves e das manifestações de cunho político estudantl.

Saltaste da tua poltrona cativa quando te falei quão retrógrado, descabido e hipócrita era o protesto da Igreja Católica, em plena procissão de Corpus Christi, contra o projeto do divórcio.

Idolatravas a organização e o modelo empresarial americano. Para te contrariar, dizia que abominava o imperialismo capitalista. Erguias o dedo indicador e rebatias que eu somente fazia a leitura das esquerdas.

Pois é, meu Velho. No entanto, jamais corri o risco de responder processo por perdas de vidas humanas na direção de um carro. Sou um profissional do Direito.

Tenho minhas fugas e os meus devaneios literários, de que tanto te orgulhavas e dizias “este é o meu filho!”. Tiveste a alegria de ter o neto em teus braços e fazê-lo adormecer.

Deixei de lado a anarquia inconsequente da juventude e herdei, tu o sabes, tuas maiores virtudes, a Honradez e a Honestidade.

Não pude, é lógico, ser partidário de todas as tuas opiniões, pois eram nesses confrontos que residia o calor dos nossos debates. Permaneci defensor do divórcio e contrário a alguns dogmas da Igreja.

Soube que, há poucos dias, disseste que nós, teus filhos, deveríamos te achar “careta”, porque tu e a mãe eram felizes, companheiros e amigos, numa relação de amor, há 32 anos.

Que lindo, meu Velho querido! Pudera eu fruir de algo assim. Quem sabe?

Quanto ao “patrão” americano, absteve-se de comprovar que estavas certo, ignorando, a tempo, tua fidelidade, dedicação e as noites insones para que o gigante de mármore e vidros climatizados*, se alevantasse e se tornasse realidade, com vistas para a Praça da Alfândega. Ignoraram, sobretudo, o teu coração – ah, meu Velho, este teu coração, cada vez mais acelerado.

Isto é um pouco de ti e, para tantos, é demais. Todos os meus deslizes perdoavas em seguida, ainda que não me dissesses. Eu, certamente, levava mais tempo para te entender e perdoar. Somente não te perdoei uma única falta: não nos preparaste para a tua breve partida.

* Esta crônica foi escrita em 16/03/1979

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