Colunistas

O Rio

Pasticho sobre o Capítulo I de “O Continente”
Da trilogia “O Tempo e o Vento”, de Erico Verissimo

…sobre as cintilações que emanavam dos
grãos de areia como pequeninas
estrelas…

Chovia muito naquela quinta-feira. As províncias da fronteira oeste do Rio Grande guardavam, esperançosas de estiagem, o dia onomástico de São Pedro; o ano era mil novecentos e sessenta e quatro. As nuvens carregadas e a fúria dos ventos emprestavam aos povoados ribeirinhos, de tão quietos e desertos, a aparência de cemitérios abandonados. Vinda de Uruguaiana, a barca de Mestre Araújo, O Continente, enfrentara com valentia a correnteza dos rios Uruguai e do Ibicuí. Escurecia quando, finalmente, ela enveredou para o Ibirapuitan, por onde alcançaria Alegrete, seu porto final. Mestre Araújo conhecia como ninguém os segredos de cada margem, de cada curva daqueles cursos d’água. Ele há muito havia sublimado a revolta contra aquelas águas – que, prematuramente, assistira tragarem-lhe o pai e a mãe – num pacto de mútuo respeito. Sabia com precisão o momento de arrojar a embarcação no dorso dos vagalhões que se abriam em desnivelamentos imensos. Da diminuta torre de comando, com o escasso auxílio de duas oscilantes lanternas a querosene amarradas à proa e ao cimo do mastro, ele concentrava toda a sua atenção no leito do rio e nos contornos da vegetação marginal que mal conseguia divisar. As rajadas de chuva vergastavam-lhe impiedosamente as faces feito chibatas. As mãos contraíam-se e os dedos crispavam-se ao timão como se firmassem o cabo de uma arma pronta para ser brandida na luta. E quem ousaria afirmar não ser aquela uma grande batalha? Afinal, levava a bordo o valioso lote de vacina contra a febre aftosa, ansiosamente aguardada pelos estancieiros da região. Transportava, sobretudo, vidas humanas, cada qual com seus sonhos, seus fracassos, suas esperanças e sua fé, como a ele próprio, Mestre Araújo. Num átimo, o pensamento navegou, não o Ibirapuitan, mas o distante e caudaloso rio que ele avistara, numa tarde já morrente, do embarcadouro onde se encontrava.

Ouviu o clamor furioso das águas revoltas chocando-se contra o promontório. A ventania persistente provocava redemoinhos nas areias da praia. Foi, então, que ela surgiu, de repente, os pés descalços, envolta por negras quase transparentes sedas, na noite inda criança. Sem alarde, A Guerrilheira cruzou o caminho de cada anônimo navegante, sem se fazer notar, sem que eles percebessem, sequer, o lamento que se espargia de sua alma e do corpo ulcerado. Impossível, no entanto, ocultar-se por muito tempo nas sombras do anonimato. As luzes do cais e dos letreiros das tabernas refletidas nas pedras úmidas brilharam como spots num palco onde ela era o cisne negro em seu próprio bailado de morte. Ela bailou… Bailou pisando os grãos de areia da praia que cintilavam como pequeninas estrelas. Mestre Araújo testemunhava, em respeitoso silêncio, a misteriosa coreografia. A Guerrilheira era sublime em sua negação da Morte. Não revelava o desespero ou, paradoxalmente, a submissão dos desenganados perante o inevitável. Firmava a certeza de que jamais haveria a entrega sem o derradeiro combate. Os braços, tais asas tremulantes, adernavam, num extremo esforço, tolhendo qualquer tentativa da Traiçoeira em roubar-lhe a altivez. Ela bailou… bailou… Recatadamente, deixara para trás a aldeia, seus homens, seus vícios, suas mentiras e hipocrisias. Na margem do rio, A Guerrilheira olvidou as dores e os sofreres. Com o coração em transbordamentos de alegria e de encantos, Mestre Araújo evadiu-se da estase em que até então se mantivera e, em tresloucada corrida, projetou-se na direção da suave visão.
A Guerrilheira, agora, era um cisne negro.

Como se tal gesto pudesse abrandar todas as lembranças doridas e apagar as cicatrizes que trazia na alma, Mestre Araújo prescindiu da mão esquerda na roda do leme e, com vigor, esfregou os olhos congestionados, redobrando seus cuidados para com as águas do Ibirapuitan. A torre do comando encimava um cubículo desprovido de qualquer conforto, destinado à carga e a alguns poucos que ali se aventurassem viajar, sobretudo em dias tormentosos como aquele. O velho navegante sabia, ali estavam eles, anônimos aventureiros, aninhando-se como podiam do frio e da umidade que traspassava o madeiramento da cabine, do dilúvio que parecia não ter fim. Mestre Araújo, sem desviar os olhos do leito revoltoso do rio, inclinou-se e recolheu uma garrafa de canha, cheia até a metade, dela sorvendo um longo trago para se aquecer. Ele sabia que, no íntimo, era para apagar, inutilmente as remebranças da imagem d’A Guerrilheira.

*O pasticho, assim como o retoque , nada mais é do que a imitação ou decalque de uma obra literária ou artística, frequentemente SEM objetivos satíricos ou humorísticos, como  a paródia e a sátira. Por serem “exercícios de estilo” (o pastiche. a paródia, o plágio, o retoque, a sátira, a paráfrase, a alusão, a citação e o plágio), ficam geralmente adstritos ao “consumo interno”. Faço, agora, exceção.

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