Soberba – Por Sergio Agra
VI Capítulo da Série “O Confiteor de Aleph”
O Brasil Macunaíma, adormecido no berço esplêndido da preguiça e do “deixa acontecer pra ver como é que fica…”, manifestou os primeiros e tênues sinais de que desejava abandonar os ranços de antiga colônia portuguesa e o ostracismo de aldeia tupiniquim. A indústria automobilística ensaiou os primeiros quilômetros. O então presidente da república, Juscelino Kubitschek de Oliveira, desfilou garboso no protótipo conversível da Volkswagen, enquanto Lúcio Costa e Oscar Niemayer, na vastidão do Planalto Central, deram asas aos delírios do megalômano Chefe de Estado. Juscelino adotou uma nova conduta no campo econômico; governando dentro de uma concepção empresarial e desenvolvimentista, sem levar em conta os custos, atuou sob um lema que viria a ser famoso: “Cinquenta em cinco”, ou seja, fazer o país crescer cinquenta anos em apenas cinco.
O progresso industrial era uma realidade, mas a inflação também. Seria preciso um planejamento muito sério para que se encontrasse uma saída que possibilitasse o desenvolvimento sem um índice inflacionário capaz de trazer a intranquilidade social. O desequilíbrio do sistema monetário levou a Nação a um grave impasse, visto que os sindicatos constantemente forçavam aumentos salariais e isso pressionava o custo da produção e agravava o problema dos aumentos de preços.
Em Porto Alegre, ergueram-se, nos altos do morro de Santa Teresa, os ferros da antena transmissora da primeira estação de TV.
Aprovado nos exames para Admissão ao Ginásio, para Aleph o contato com a disciplina do colégio religioso, em contraponto às doces professoras do Ensino Primário, fora brusco. A arrogância e o despotismo dos padres materializavam-se no arremesso de barras de giz ou do próprio apagador de lousa na testa do aluno mais desatento.
Márcio Y., o aluno que ostentava longos e rebeldes cabelos, fora pego em conversa com o colega ao lado. O irado padre, professor de francês, ameaçou-o, caso mantivesse a conversação, arrancar-lhe a juba. Vais me deixar careca? – reagiu o conversador. – E como eu vou ficar? – Usa a cabeleira da Brigitte (Bardot)! – complementou um intrometido Aleph.
Ambos foram expulsos da sala de aula, encaminhados à sala da diretoria e, cada qual, incumbidos de trazer, para o dia seguinte, de próprio punho: “Não devo pensar na cabeleira da Brigitte”… Não devo pensar na cabeleira da Brigitte… – quinhentas vezes!
No caminho, entre a sala de aula e a sala do Diretor, no terceiro pavimento, achava-se o sino que anunciava o início e o término de cada período de aula. Aleph, naquele momento, carimbava para o ano seguinte o “passaporte” de sua saída definitiva do Colégio ao aplicar três sonoras badaladas e, para assomo dos professores, provocar a invasão antecipada dos mais de quatrocentos alunos aos folguedos do recreio. Fora mandado mais cedo para casa e dispensado por três dias do comparecimento às aulas.
Desconheciam, ainda, os padres e todos os gaúchos que o Rio Grande do Sul estava prestes a aderir ao Estado de Sítio nos dias que se seguiriam.
O Louco da Vassoura anunciara sua renúncia ao cargo de Presidente, enquanto o vice-presidente se encontrava em visita à China. Os militares, que temiam ver no Brasil um governo de esquerda impediram Jango de assumir o cargo como mandava a lei.
O Último Caudilho, metralhadora firmemente segura na destra e microfone na outra mão, exortava o povo rio-grandense para defender a Campanha da Legalidade. Filas imensas formavam-se à frente do portão principal do Palácio Piratini. Eram voluntários que se inscreviam para cerrar fileiras à admoestação do Ultimo Caudilho. A Sede do Governo ficava no trajeto do Colégio dos Padres e a casa de Aleph. Ele não pensou duas vezes: postou-se atrás do último homem que guardava a fila.
Um puxão na orelha despertou os devaneios do esboço de herói. Avisado que fora por um cliente das pretensões do moleque, o pai o carregou a cabresto de volta ao lar. Razões não faltaram para que, após alguns dias, as comemorações do aniversário de Aleph fossem definitivamente sepultadas.
Se não houvera mesa enfeitada com bolo, brigadeiros, refrigerantes e o alarido dos amigos, no amanhecer do dia em que Aleph completava mais um ano de idade, se fizeram presentes, no entanto, as pesadas nuvens que cobriam os céus e obrigavam os moradores a manter acesa a chama das lamparinas como se noite fosse. O vento mormacento invadiu em remoinhos os becos e ruas da cidade, fazendo bater portas e janelas, arrebatando de cordas e cercas as roupas postas a secar nos quintais, erguendo as saias pregueadas das normalistas e lhes desmanchando o caprichoso penteado.
O inusitado perdurou por sete dias.
O colégio seguinte ficava na região central da cidade. Era um velho casarão que no ano imediato daria lugar à construção de um imenso e luxuoso hotel.
A disciplina era mais implacável, comparada a dos padres. Estudavam-se o Português, o Inglês, o Francês, o Latim, o Alemão, a História, a Geografia, a Matemática, o Desenho, a Religião, a Música, o Artesanato. A Educação Física, por sua vez, era ministrada no pavilhão de uma Sociedade a poucos quarteirões de distância.
A mudança de endereço do educandário para um bairro ainda inóspito ensejaria, algum tempo mais tarde, a utilização do que hoje se conhece por “Van Escolar”.
Suzana K. – como fora Maria do Carmo – preenchia, agora, o espaço do recalcado fascínio de um introvertido Aleph.
Pouco duraria este devaneio. Na fria manhã de 22 de junho, os desavisados alunos que chegaram ao Colégio foram informados de que naquele dia não haveria aula. Uma terrível e misteriosa tragédia havia se abatido sobre a família de três alunas do estabelecimento. Uma delas era Suzana. A mãe fora brutalmente assassinada.
Aleph nunca mais a reencontraria.
Sergio Agra
agraeagra@terra.com.br
Escritor – Autor dos livros “Mar da Serenidade”, O Corpo de Gioconda” e “Ryujin, o Dragão Mágico