A bancada evangélica é também o ópio do povo? – Sergio Agra
Cheguei à insofismável e triste conclusão de que sou um TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Desobedecendo à minha própria resolução de desfrutar de um período sabático com a publicação de meus textos, ontem postei apenas uma sentença sobre os evangélicos e a política nacional atribuída a Leonel Brizola. Pra quê? In box, amigos leitores me exigiram desenvolver a temática. E neste início de tarde de domingo, esperando o Imortal Tricolor safar-se da Segunda Divisão, teimosamente ingressei na seara do “pecado”: Voltei a escrever! Aos que tiverem paciência e generosidade, afianço-lhes: vale ler até o fim!
Partidários e adversários do marxismo parecem concordar em um ponto: a célebre frase “A religião é o ópio do povo” representa a quintessência da concepção marxista do fenômeno religioso. Contudo, essa fórmula não tem nada de especificamente marxista. Podemos encontrá-la, antes de Marx, com algumas nuances, em Kant, Herder, Feurbach, Bruno Bauer e muitos outros. Resumo da ópera: a sentença é muito antiga!
Peguemos dois exemplos de autores próximos a Marx. Em seu livro sobre Ludwig Börne, de 1940, Heine se refere ao papel narcótico da religião de maneira positiva – com uma pitada de ironia: “Bendita seja uma religião, que goteja sobre o amargo cálice da humanidade sofredora algumas doces e soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança”.
Moeses Hess, em seus ensaios publicados na Suíça em 1843, adota uma posição mais crítica – mas não livre de ambiguidade: “A religião pode render suportável… a consciência infeliz da servidão… da mesma forma que o ópio é uma grande ajuda nas doenças dolorosas”.
A expressão aparece pouco depois no artigo de Marx, “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1844). Uma leitura atenta do parágrafo inteiro mostra que seu pensamento é mais complexo do que poderíamos pensar habitualmente. Na realidade, rejeitado a religião, Marx não toma menos em conta o seu duplo caráter: “A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da verdadeira angústia e a protestação contra essa angústia verdadeira. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como ela é o espírito de uma situação sem espiritualidade. Ela é o ópio do povo”.
Uma leitura do ensaio em seu conjunto mostra claramente que o ponto de vista de Marx em 1844 revela mais do neo-hegelianismo de esquerda, que vê na religião a alienação da essência humana, do que da filosofia das Luzes, que a denuncia simplesmente como uma conspiração clerical. No momento em que Marx escreve a passagem acima ele era ainda “pré-marxista”, sem referência às classes sociais e um tanto a-histórica (Contrário à história. Que não é histórico). Mas ela não era menos dialética já que ela apreendia o caráter contraditório da “angústia” religiosa: às vezes a legitimação da sociedade existente, às vezes protesto contra ela.
Convencido de que a crítica da religião deve se transformar em crítica desse vale de lágrimas e a crítica da teologia em crítica da política, ele parece desviar sua atenção do domínio religioso.
É talvez por causa de sua educação pietista (Atenção!!! Pietismo, isto é, Movimento religioso nascido na Igreja Luterana alemã no século XVII) que Friedrich Engels mostrou um interesse bem maior que Marx para os fenômenos religiosos e seu papel histórico – compartilhando, é claro, as opções decididamente materialistas e ateias de seu amigo. Sua principal contribuição à sociologia marxista das religiões é sem dúvida sua análise da relação entre as representações religiosas e as classes sociais. O cristianismo, por exemplo, não aparece mais em seus escritos (como em Feuerbach) como essência a-histórica, mas como uma forma cultural (“ideológica”) que se transforma ao longo da história e como um espaço simbólico, jogo de forças sociais antagônicas.
Graças ao seu método fundado na luta de classes, Engels compreendeu – contrariamente aos filósofos das Luzes – que o conflito entre materialismo e religião não se identifica sempre com aquele entre revolução e reação. Permanecendo materialista, ateu e adversário irreconciliável da religião, Engels compreendia, como Marx, a dualidade da natureza deste fenômeno: seu papel na legitimação da ordem estabelecida, assim como, em circunstâncias sociais adequadas, seu papel crítico, contestatório e até mesmo revolucionário. Mais ainda, é este segundo aspecto que se encontra no centro da maior parte de seus estudos concretos. Com efeito, ele se debruçou inicialmente sobre o cristianismo primitivo, religião dos pobres, excluídos, condenados, perseguidos e oprimidos. Os primeiros cristãos eram originários das últimas fileiras da sociedade: escravos, libertos privados de seus direitos e pequenos camponeses submersos em dívidas. Engels foi até o ponto de estabelecer um paralelo surpreendente entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno. A diferença essencial entre os dois movimentos residia no fato de que os cristãos primitivos depositavam a libertação no além enquanto que o socialismo a colocava neste mundo.
Saltemos no Tempo, para a década de 1970.
Algumas alas da Igreja Católica no Brasil deletaram aqueles princípios do Cristianismo focando-se nos interesses das classes dominantes, Fora o suficiente para que, em 1977, a esperteza do “Bispo” Edir Macedo percebesse a carência “espiritual” dos “cristãos perseguidos e oprimidos”, originários das últimas fileiras da sociedade brasileira. E mais, que a liturgia da “Santa Missa” se assentava a um perfeito show business televisivo. Assim o auditório da TV Tupi, Canal 6, do Rio de Janeiro prestou-se como cenário ideal ao “Cassino do Evangélico”, ou “Domingão do Pastor”, sob o comando do bispo televangelista, onde as dezenas de sacolinhas de rústica lona transfiguraram-se em poderosos gazofilácios, pilares para a construção de nababescos templos, como o de Salvador, com dez pavimentos, confortáveis auditórios televisivos com capacidade para 5.000 adeptos evangélicos, testemunhas oculares e auditivas do caiçara baiano que eufórico, segurando o carnê de pagamento das Lojas Bahia, jurava que aquela dívida fora paga e salva por Jesus (acaso seria Jesus, o português da padaria da esquina, a caridosa alma salvadora?).
Nada surpreende o que ocorre entre os pustulentos gabinetes do Congresso Nacional, o Ministério da Educação, e os pastores das igrejas evangélicas e neopentecostais. Décimo Júnio Juvenal, poeta e retórico romano, autor das Sátiras, sequer necessitou saber daquelas instituições para decretar o “panem et circenses” – pão e circo – tupi-guarani onde eles pediam trigo no Fórum (Congresso) e espetáculos gratuitos no circo (igrejas), ou seja, aqueles que se contentam com comida e diversão grátis, sem questionarem o desempenho dos governantes, que dessa forma garantem o apoio da população.
Sem pretender ser repetitivo, Leonel Brizola há muito previra o aparelhamento do estado por grupos evangélicos e a ascensão ao poder alertando: ” Se os evangélicos entrarem na política, o Brasil irá para o fundo do poço. O país retrocederá vergonhosamente e matarão em nome de Deus.”