A imolação da lira dos vinte anos
seuls graver sur ma pierre, si je mérite une pierre.”
Lamartine
Era véspera do Natal. Tinha planos de assistir à MISSA DO GALO na Candelária. Como ainda era cedo, eu me distraí olhando alguns pergaminhos, caprichosamente dispostos numa das paredes da sala revestida com pisos de tabuões de jacarandá. O Brasil vivia os raros dias de uma SERENÍSSIMA REPÚBLICA.
Joaquim Maria Machado de Assis entrou precipitadamente naquele recinto sacralizado. O semblante, carregado e o fato de não ter percebido minha presença ali, demonstrava claramente sua preocupação. Num incessante vai e vem – em LINHA RETA E LINHA CURVA –, as mãos entrelaçadas às costas, o homem, de pequena estatura percorria a extensão da sóbria sala de reuniões, localizada nas instalações do Pedagogium, prédio fronteiro ao Passeio Público, no Centro do Rio de Janeiro. Consultava, de tempos em tempos, O RELÓGIO DE OURO, preso ao colete por delicada corrente. Tenso, ele aguardava, sobretudo, a presença de Olavo Bilac, Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay e Rui Barbosa, seus confrades.
“Quatro ou cinco cavalheiros debateriam, naquela noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos”**. Todos eles vinham se perguntando, Afinal, qual era o motivo de tamanha apreensão do BRUXO DE COSME VELHO? O SEGREDO DE AUGUSTA fora descoberto? Furtaram O ANEL DE POLÍCRATES? A imprensa carioca, precocemente “marrom”, vazara AS CONFISSÕES DE UMA VIÚVA MOÇA? Os usineiros do sertão pernambucano estariam superfaturando o preço do açúcar para os chás das quintas-feiras?
Presentes os convocados, Machado sequer se lembrou – e não se faziam mesmo necessárias, devido à gravidade do momento –das regras protocolares das reuniões dos imortais, Senhores, toquemos a MARCHA FÚNEBRE; a situação é deveras gravíssima! Teus leitores descobriram que Capitu, efetivamente, traíra Bentinho, perguntou Ruy Barbosa, no seu ambíguo modo: irônico/sério. Ora, ora, Ruy, devolveu, no mesmo tom, Machado, outro que adorava uma ironia, Isso é uma disputa de PAI CONTRA MÃE. Ah, bem, treplicou Barbosa, pensei tratar-se d’O CASO DA VARA. Machado não deixava por pouco, Mesmo O ALIENISTA não teria juízo para tanto! Ora, direis, ESAÚ E JACÓ estão a ouvir estrelas?, arriscou Bilac, que vivia sempre “fora da casinha”. Ruy teve ganas de retrucar, SUJE-SE, GORDO! Os demais, que em silêncio chegaram, calados ainda se mantiveram, afinal, Bilac também era UM HOMEM CÉLEBRE. Machado soqueou a mesa como se esta fora A MULHER DE PRETO; escondeu o ricto e o gemido de dor, não queria parecer fracote. Finalmente esclareceu, Vocês se lembram do Padre Francisco de Azevedo? O celebrante d’DAS BODAS DE LUIS DUARTE?, quis saber Bilac. Aquele da geringonça de escrever?, questionou Ruy. Sim, aquele mesmo! esclareceu Machado, A PARASITA AZUL, quando não está ENTRE SANTOS enchendo a cara com o vinho da Paróquia, esconde-se com as irmãzinhas do Mosteiro da Caridade – agora sim, Bilac – para “verem” e “ouvirem” estrelas, lá no roçado. Pois o herege está colocando no mercado a invenção que ele trabalhou por uma vida inteira: a tal máquina de escrever. Olavo Bilac quis saber, Afinal, Machado, porque o vigário te preocupa tanto? Não é a mim, Bilac, sustentou Machado, Mas a nós todos, à memória dos nossos confrades falecidos: José de Alencar, Gregório de Matos e outros tantos que, como nós, escreveram a bico de pena. Vocês já pensaram: essa engenhoca, a tal máquina de escrever vai acabar com o nosso mercado! Nós nos tornamos escritores exatamente porque o populacho, por indolente e preguiçoso, detesta ou não sabe escrever uma linha a bico de pena. Levamos mais de meses para escrever um soneto, um conto, uma crônica de qualidade, que dirá um romance! Agora, com a aberração inventada pelo Padre Azevedo, todo mundo vai achar que é poeta, romancista. Estamos acabados! Eles irão descobrir que o Gregório de Matos era um renomado amante do ócio e aproveitador que pagava a dezenas de bêbados poetas para escreverem por ele. Com a máquina de datilografia vão se aperceber de como é fácil escrever para a “compreensão” da meia dúzia de neurônios das donzelinhas de família da alta society, como o fizeram José de Alencar e Joaquim Manoel de Macedo, que o Todo-Poderoso os tenha e guarde, mas que – cá entre nós – eram de uma canastrice monumental! Realmente, trata-se de uma SINGULAR OCORRÊNCIA; se não podes com o inimigo, alia-te a ele, este era Ruy Barbosa. Machado estava atônito, Como assim? O próprio Visconde completou, Escrevamos à máquina! Vai ser a barbárie das barbáries, O ÚLTIMO CAPÍTULO; morreremos afogados pelas LÁGRIMAS DE XERXES, vociferou Machado de Assis. Com a ajuda do monstro repleto de teclas, bobinas e sabe-se lá mais o quê, eliminar-se-á o bem escrever que só nós, os adeptos do bico de pena somos dotados. Já basta o que, dias desses, me vaticinou A CARTOMANTE. A sala ficou, repentinamente, mergulhada no mais austero silêncio. Os confrades, agora ansiosos, aguardavam as palavras de seu líder, O parnasianismo, o simbolismo e o romantismo serão assassinados por outras correntes avassaladoras. Daqui a pouco mais de vinte anos, o Brasil será bombardeado pelos antropofágicos e piratas do mal, liderados pelos irmãos Andrade – Mário e Oswald –, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, Plínio Salgado, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Renato de Almeida, Ribeiro Couto e Guilherme de Almeida. Todos eles talentosos, é verdade! Isso nos consola, e muito! Mas, daqui a cem anos, a vidente ainda me contou, uma máquina mais monstruosa e devoradora possibilitará a invasão dos marimbondos de fogo e do mago fanfarrão que, em “onze minutos” declamará, jocosamente, nesta nobre e sagrada mesa, onde libamos o nosso chá das quintas-feiras, que “veronika decide morrer” na companhia d’“o demônio e a senhorita prym”, d’“a bruxa de portobello” e ao entardecer, hipocritamente ainda dirá o mago que “na margem do rio piedra eu sentei e chorei”. O pior: serão criadas oficinas literárias e todos hão de se proclamar como “talentosos” poetas e escritores, resultando numa enxurrada de filhotes assassínios das belas letras.
Em contrito silêncio, aqueles homens dirigiram-se aos armários que revestiam a parede oposta de onde estavam os pergaminhos e, ali, cada um depositou o seu casaco em camurça de lã na cor verde musgo, com aplicações de ramos de café bordadas com fios e lantejoulas dourados, usados naquelas ocasiões. Depois que todos se foram, mirei a sala, agora em penumbra, fechei a porta e fui-me embora para Pasárgadas, pois, daquele dia em diante, a literatura e o Brasil nunca mais seriam os mesmos!
* Trata-se de um pastiche – imitação ou decalque de uma obra literária ou artística, frequentemente com objetivos satíricos ou humorísticos – sobre alguns títulos dos contos de Machado de Assis.
**Extraído do conto “O espelho”, de Machado de Assis.