Capítulo XXI de “Navegar É Preciso...” - Sergio Agra - Litoralmania ®
Sergio Agra
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Capítulo XXI de “Navegar É Preciso…” – Sergio Agra

DESENREDANDO O PORÃO

 Capítulo XXI de “Navegar É Preciso…”

A alma humana é um abismo escuro e viscoso,

um poço que se não usa na superfície do mundo.

Fernando Pessoa

 Quando a noite caiu em pleno dia sobre Porto Alegre e o temporal de chuva e vento se desencadeou eu estava por completar quatro anos. Pesadas nuvens cobriram os céus e obrigaram os moradores a manterem acesa a chama das lamparinas como se noite fosse. Vindo do rio um vento intempestivo e mormacento invadiu em remoinhos os becos e as ruas de Porto Alegre, fazendo bater portas e janelas, arrebatando de cordas e cercas as roupas postas a secar nos quintais, erguendo as saias pregueadas das normalistas e lhes desmanchando o caprichoso penteado. Esse vento ainda espargia as cinzas do incêndio que revoltosos haviam provocado nos estúdios da emissora de rádio situada nos altos do antigo Viaduto. Essa estranha ventania que causara às pessoas um agourento presságio de fim do mundo convergiu para a Praça, defronte a Catedral, onde já se providenciavam os preparativos para a solene Missa de Réquiem ao Caudilho que nas primeiras horas daquela madrugada saíra da vida para definitivamente entrar na História.

Desde então, na semana que precede a data de meu aniversário, a paisagem de Porto Alegre se transforma: o céu adquire uma tonalidade pardacenta, carregado de nuvens plúmbeas, como que se abaixassem e intencionassem afogar a terra. As luzes são acesas dentro das casas e o vento abafado domina todos os recônditos da cidade até concentrar-se no obelisco da Praça da Igreja Matriz.

Aquele não seria para mim um alvorecer diferente dos que a contar dos quatro anos anunciavam a proximidade da data de meu aniversário. Tomei a categórica decisão: eu iria renunciar às celebrações de meus anos abandonando a zona de conforto em que eu me mantivera albergado mesmo que até há pouco tempo residisse e trabalhasse em Paris e colocaria um fim àqueles espectros que me perturbavam o espírito.

Este arbítrio se me tornara imprescindível, vital: — eu iria descerrar as portas do porão para que dali eclodisse a sombra até então represada pelo meu ego. Demonstraria assim a intrepidez necessária para mergulhar em mim mesmo, na minha natureza sombria, e empreender a jornada de autoconhecimento. Minha sombra — como a de cada um de nós — representa por um lado tudo aquilo que eu (e nós todos) “não gostaria de ser”. É na sombra que também guardamos ricos potenciais, pois ao nos identificarmos e vivermos um lado, o trazemos à luz da consciência, reprimimos pelo menos o outro lado na sombra. A cada escolha o ego deixa de viver muitas outras possibilidades que também se incorporam à sombra. Desta forma, a sombra guarda muitos potenciais que podem ser conscientizados, nos fornecendo novos recursos. Quando o ego toma uma posição unilateral ele polariza um lado em que se discrimina e se identifica, guardando no mínimo o lado oposto que também se polariza na sombra, seguindo o princípio da compensação.

Recordava-me do dia em que dissera a mim mesmo, — “Vou voltar àquela casa, sem dia e hora definidos. Será preciso, sim, que eu abra aquela arca… para que nada mais fique aprisionado no porão…”. Foi nesse momento que a campainha tocou…

Vim para festejarmos o nosso aiverário e desenredar nosso porão de coisas mal-resolvidas!”. Esta era Caterina, a prima a quem nunca mais vira desde que eu parti para Paris. Ela em seguida arrematou,   “Afinal teu ingresso na idade do lobo merece bem mais do que uma simples comemoração!”.

Lembrei-me que, de fato, nossos aniversários são em dias muito próximos um do outro. Após se desvencilhar da bolsa e da sacola, onde ela acondicionara duas garrafas de Beaujolais, Caterina acomodou-se no sofá da sala e com desembaraço disse-me em tom aparentemente natural que me achava bem e que, apesar da barba embranquecida e com o passar dos anos, eu não havia mudado muito, continuava um homem bonito. Até então eu me mantivera calado, estupefato pela surpreendente e intrépida visita. Eu estava visivelmente constrangido. Tentava em vão ligar a menina assustadiça dos passeios no conversível do Sr. Leccapiedi alvo de meus cuidados e proteção ao envolver nas minhas suas pequeninas mãos , com a linda, elegante e resoluta mulher em que ela se transformara e agora me desafiava a resgatar sentimentos que ficaram em tempos perdidos. Logrei devolver a gentileza afirmando que ela estava mais bela do que nunca.

O quê deu em ti, sumir por tantos anos? ela perguntou enquanto eu desarrolhava a garrafa do vinho Fui pega de surpresa! Soube disso exatamente na festa de minha formatura do ginásio quando perguntei por que não estavas lá. Podes imaginar que, para mim, o que era para ser uma festa se transformara em velório?”. Estendi-lhe o cálice e sentei-me ao seu lado, A notícia de minha aprovação chegara num prazo demasiado curto ao do encerramento da matrícula justifiquei, — Eu teria que confirmá-la antes dos feriados do Natal e das festas de Fim-de-Ano… Passaporte, o histórico e o desempenho acadêmico que a UFRGS tardava em fornecer me deixaram em pânico!”. Mudando o jazz Caterina perguntou, Soubeste que casei? À minha resposta afirmativa ela completou, Tenho uma filha!”. Sim demonstrei fingida naturalidade eu soube disso tudo. Bárbara me dava notícias da família”. Bárbara também me contou Caterina rebateu de teu affaire com uma italiana…”. Sim, afirmei sem encará-la Maria Pia. Rompemos muito tempo antes de eu retornar.” — apressei em deixar isso bem claro. Rigoberto tem um prazo até o final deste ano para se mudar” era Caterina também esclarecendo e atualizando os fatos   Decidimos amigavelmente pela separação!”.

O silêncio pesado dominou por longos minutos o ambiente. Foram então os olhos que verdadeiramente falaram por nós; foram eles que romperam eventuais bloqueios, derruíram barreiras que pudessem ser erguidas pelos nossos mecanismos de defesa e que certamente haveriam de frustrar aquele reencontro. Como dois seres carentes e tímidos, abrimos antigos baús e fomos redescobrindo nossas antigas fantasias. Elas brotaram, concedendo às crianças em que nos transformáramos a certeza de que os sonhos ainda estavam ali, inteiros.

As primeiras gotas de chuva de encontro às vidraças soavam como música àquela silenciosa conversação. Num rompante, Caterina achegou seu corpo pulsante e febril e mordiscou-me o lóbulo da orelha e num tom de voz que indicava sapequice perguntou, Esse teu perfume eu não conheço…”. Mesmo intrigado, satisfiz-lhe a curiosidade, Bois D´Amande Van Cleef & Arpels. É um perfume unissex!”. A súbita explosão de contentamento de Caterina uma vez mais me deixou em sobressaltos, Aaah! ela exclamou Esse eu vou poder colecionar e sem ter que dar explicações a ninguém, menos ainda a Rigoberto!”. Meu assombro era flagrante. Ela completou,   “Lembras, primeiro do Lancaster, mais tarde o Rastro e o Patchouli?”. Sim respondi — foram perfumes que eu muito usei!”. A risada franca de Caterina seguida de sua resposta deixou-me ainda mais basbaque, Pois eu colecionava todos os perfumes que usavas. Borrifava meu travesseiro e sonhava que estavas ali, ao alcance de minha mão…”. Até hoje ignoro de que escannho de minha imaginação a pergunta surgiu: Será que devo iniciar alguma coleção de algo inusitado como foi a tua?”. Quem sabe hoje mesmo comeces com um fetiche?… ela aventou Como presente pelo teu aniversário eu te darei a primeira peça para a tua coleção…”. E a acolhi em meus braços…

Quando a noite sem chuva enfim chegou e o luar invadiu o quarto, encontrou na cintilação dos nossos corpos suados o brilho de uma constelação e a paz de um universo todo…

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