Capítulo XXIV de “Navegar É Preciso – Sergio Agra
O SONHO NÃO ACABOU
Capítulo XXIV de “Navegar É Preciso…”
“Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma.
O sonho é o que temos de realmente nosso,
de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso”.
Fernando Pessoa
Imóvel à soleira da porta de acesso da saleta onde nos encontrávamos Dona Alice e eu, o jovem ainda com traços de quem saíra há pouco da adolescência esforçava-se por parecer o mais natural possível. Eu próprio não conseguia dominar a emoção que fremia em meu ser pronta para explodir a qualquer momento. Bastaria um único gesto, uma única palavra para que isso tudo viesse à tona.
Arthur, na singela espontaneidade e na verdade em que se apoiam as manifestações de afetos ainda juvenis, à minha aproximação adiantou-se em dois ou três passos, abriu os braços, me envolveu num abraço que me parecera infinito e expressou tudo o que em dezoito anos havia entesourado no espírito. Suas palavras foram tão surpreendentes que, num primeiro momento, sequer eu soube o que lhe responder…
— “Pai! Prometes que irás me contar a tua história e também a de minha mãe?”.
Permanecemos abraçados por longo tempo. Comovido e ao mesmo tempo desconcertado pela inusitada apelação, uma força para mim ainda desconhecida encorajou-me a tardar o prometimento, — — “Deixa-me primeiro me acostumar a isso tudo? Minha ‘ficha ainda não caiu’, não é assim como vocês dizem?”. Um largo sorriso que demonstrava genuína felicidade estampou-se nas faces de Arthur.
Foi ele, no entanto, quem se dispôs a narrar a história de uma mulher que se exilara no Chile. Amigos do então recém-nomeado embaixador do Chile em Paris, o poeta Pablo Neruda, acolheram-na na casa do poeta, La Sebastiana, em Valparaíso.
— “Minha mãe — este era Arthur – quando me falava daquela casa dizia que ela rescendia a poesia e das palavras de Neruda quando a acolhera: ‘Aqui estão o pão, o vinho, a mesa, a casa, tudo o que é necessário ao homem, à mulher, à vida’.”.
Arthur fora registrado no Registros Civiles de Chile, em Santiago, como Arthur Reyes, sobrenome emprestado por Ricardo Eliécer Neftali Reyes, que outro não era senão o próprio Neruda.
Em 1972 Pablo Neruda, gravemente enfermo, retorna de Paris. Em seguida há o golpe do general Augusto Pinochet que leva o então presidente Salvador Allende ao suicídio e a decretação de uma longa e sangrenta ditadura que duraria dezenove anos. Chilenos opositores ao general ditador e exilados brasileiros viram-se na contingência de abandonar aquele País.
Maria do Carmo e Arthur iniciaram a longa travessia até Lisboa.
Em Lisboa Maria do Carmo fora admitida não apenas como secretária do Conservatório Nacional de Lisboa, uma escola superior vocacionada para o ensino do Teatro e do Cinema, como acadêmica, ocasião em que encenara os autos de Ariano Suassuna e as comédias de Martim Pena. Os planos de Maria do Carmo eram de não mais retornar ao Brasil e o de possibilitar o sonho de Arthur: estudar na Faculdade de Ciência da Computação da Universidade de Stanford, em Palo Alto, no Vale do Silício, Califórnia, para o que mantinha uma conta bancária para custear os estudos do filho. Um câncer de cólon se mostrara fulminante…
— “Este sonho acabou…” — mal consegui escutar o pungente desabafo de Arthur. Ergui-me e colocando minhas mãos sobre os ombros do rapaz determinei, — “Ele apenas está começando, filho!”.
No dia seguinte demos início à regularização da Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade, Passaporte e demais documentos de Arthur, filho de Maria do Carmo e de Aleph. Coloquei à venda o apartamento de meus pais e me estabeleci no Bairro Santa Cecília, num pequeno quarto-e-sala — mais se fazia desnecessário; minha rotina girava em torno de aulas que eu ministrava nos Institutos de Letras da PUC e da UFSM, e nas palestras proferidas nos diferentes Centros Acadêmicos. Os frutos da transação do imóvel, depositados em nome de Arthur garantiriam a conclusão do curso que ele desde cedo em sonhos alimentara…