Colunistas

Concerto Andaluz V

Alegro com spirito

Naquela noite Miguel não dormiu.

Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando, sem ver as brasas vermelhas do nhanduvai… as brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes. Sons longínquos de uma madrugada que se anunciava como interminável invadiram o quarto.

A cabeça dava voltas sobre o travesseiro na busca desesperada do sono e, quem sabe, do esquecimento do episódio das últimas horas. No meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar; era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo que devia vir e que tardava tanto já… Os lençóis amarfanhados jaziam sobre o carpete.

O louco desejo de sentir braços, pernas e boca a envolver braços, pernas e boca de um outro corpo – o corpo de Angélica Elisa – num só corpo, diluiu-se como a bruma diáfana se deixa corromper pela luz esmaecida do amanhecer e revelou Miguel, agora errante, pelas ruas da cidade ainda dormente. Uma nuvem densa e baixa envolvia os caminhos, os prédios, os automóveis, as praças, os jardins, os monumentos e os últimos bêbedos regurgitados pelos botequins.

Na vitrina vazia, o manequim de mulher: nu, o bico róseo mutilado dos seios túrgidos deixava transparecer uma resina coagulada (o sangue dos títeres?), o braço decepado e o olho vazado. Estilhaços de vidro. O som roufenho do gramofone na casa de carnes: Cauby Peixoto, desvairado, entoava um tango desconhecido, Balada para un Loco. A ex-socialite, em andrajos, catava farelos de rosquinha de broa entre as cadeiras de um cinema em ruínas. Na pequena praça, o circo a céu aberto. No picadeiro, o rabino – a barba ainda gordurosa e com vestígios do carré de porco da noite anterior – contava anedotas sobre Torquemada e as fogueiras da Inquisição. Nas arquibancadas, leões circunspetos ouviam o semita, desdenhando os rugidos da anã numa jaula próxima. Sob a mandala, o palhaço partia um cálice de cristal e espargia azeite de dendê no casal de pretos-velhos ajoelhado à sua frente. Gigantescos nacos de rosbife enfeitavam a cabina telefônica.

Vindo dos lados da Catedral, o homem incrédulo, histriônico, chapéu desabado, tentava varar a nuvem abissal a bordo do aeroplano cuneiforme. A boneca antiga de louça, o olhar mortiço, equilibrava-se nos carris da estrada de ferro desativada, murmurando em tom plangente “…tudo está vermelho. Hoje tudo é vermelho… E agora, mamãe?…”. Casais, em sodomia, gemiam, lascivos, nas sacadas do sobrado da caftina Gilda M. Miguel teve a certeza de escutar, vindo do interior dos postes de iluminação, o riso demoníaco de Biscarra.

No foyer do Theatro o Menino chorava pela Incompreensão. Um castelo nos pampas era envolto por perversas línguas de fogo. Em sua fuga, Miguel invadiu templos, ilês e sinagogas, varou os porões pútridos dos quartéis, transpôs as trincheiras, ignorou as granadas e os obuses, rompeu o cerco do pelotão-de-choque, atravessou manicômios e morgues e, no cimo da montanha, de onde mirou por vez primeira a cidade a seus pés, alcançou o arrampadouro de asas-delta. Encetou a corrida e, já em meio à plataforma, fechou os olhos e, naquele turbilhão, permitiu-se mansamente planar no vazio do incompreensível, diretamente para as profundezas de um inusitado oceano.

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