DNA: o segredo da vida
Os que por curiosidade visitaram o meu site em junho ou agosto deste ano ficaram sabendo que eu realizei testes de DNA. Não, eu não estava tentando saber se era realmente filho legítimo de meu pai, apesar de ter consultado minha mãe antes de fazê-lo, afinal a reputação da família estava em jogo. Brincadeiras a parte, os exames de DNA estão ficando cada vez mais comuns, principalmente depois que a National Geographic Society resolveu entrar de cabeça no assunto criando o Projeto Genográfico. Tal projeto visa realizar exames de DNA na maior variedade possível de pessoas, e grupos étnicos é claro. A ideia é montar o mapa da migração humana sobre o globo.
A exemplo do que fez o geneticista Brian Sykes, autor entre outros de The Seven Daughters of Eve (As sete filhas de Eva) e o polêmico Adam’s curse (A maldição de Adão), um número crescente de famílias têm realizado exames de DNA numa cruzada em busca de antepassados comuns, uma genealogia moderna baseada em um teste que não mente – ao contrário dos registros de batismo que por uma ou outra interferência, proposital ou não, pode apontar como pai alguém que de fato não o seja.
Sykes realizou testes em quase 50 membros da família dispostos a colaborar com a pesquisa. De fato, a maioria dos exames mostrou que seus códigos genéticos, o DNA, eram idênticos ao dele, ou seja tinham o mesmo ancestral. Mas houve aqueles que apresentaram resultados diferentes dos demais Sykes. Natural, já que a genealogia que conhecemos – a realizada através de registros eclesiásticos – não é capaz de responder a todas as perguntas que fazemos em relação aos nossos ancestrais. Muito pelo fato de ela ser recente – a maioria das famílias/sobrenomes não pode recuar ao ano de 1545, ano do Concílio de Trento (1545-1563) que estabeleceu obrigatoriedade quanto aos registros de nascimento – mas também pela ação do homem sobre esses registros.
SOBRENOMES COMO MEIO DE IDENTIFICAÇÃO
Como dissemos o pai anotado no papel pode não ser o pai de fato, criando uma incompatibilidade genética entre os descendentes desse suposto ancestral em comum. O uso do sobrenome como identificação familiar surgiu mais ou menos na mesma época dos registros, mas não havia ainda uma obrigação quanto à hereditariedade como temos hoje. E isso também varia conforme o país, cada um adotou de forma diferente a utilização do sobrenome, e também em épocas variadas. Isso quer dizer que surgiram vários sobrenomes idênticos em grupos com códigos genéticos distintos, ou vice-versa, vários grupos de DNA utilizando o mesmo sobrenome como identificação.
Vamos usar como exemplo a família Schumacher. Em alemão Schumacher significa sapateiro, uma profissão comum até o advento da Revolução Industrial. O que diferenciava dois Joões, por exemplo, era a profissão dos dois – e havia ainda outras maneiras de diferenciação como características físicas, origem, etc. Assim aquele que fosse sapateiro usaria, na Alemanha o Schumacher, cabendo ao outro usar uma alcunha (sobrenome) diferente para distingui-los – como Schneider (alfaiate), se fosse essa sua profissão. Ora, sapateiros havia muitos, e em muitas vilas e cidades, surgindo assim várias famílias Schumacher (de sapateiros) sem nenhuma ligação uma com as outras.
Mas também existem famílias, com sobrenomes distintos, que no entanto são descendentes de um mesmo ancestral, com o mesmo DNA. Dois irmãos que tenham tomado rumos distintos podem ter adotado sobrenomes (meio de identificação) diferentes, em lugares diferentes. Mas se seguíssemos os registros eclesiásticos seria impossível identificar esses dois irmãos como filhos de um mesmo pai.
Só que a genealogia genética é muito mais precisa, não tem risco de erros e não sofre influências externas quanto a sua informação.
O mesmo que ocorre com as famílias ocorre também quanto às sociedades, ou grupos étnicos, em verdade é uma célula da sociedade que é formada por várias famílias. A divisão racial a que se costuma se reportar para diferenciar distintas culturas não só é equivocada em sua forma antiga, anterior século XX, como é mais absurda ainda do ponto de vista genético.
Hoje é inquestionável que todos somos descendentes de um indivíduo que viveu na África há cerca de 100 mil anos atrás, e de seus descendentes que em levas sucessivas se espalharam pelo Oriente Médio, depois Europa, Ásia e América. A ciência o chama de Eurasian Adam, o Adão Eurasiático, patriarca da maioria das populações não-africanas.
Eis o que James D. Watson e Andrew Berry escreveram emDNA: The Secret Life (DNA: O segredo da vida): “O golpe de misericórdia em qualquer orgulho que pudéssemos ter de nossa variedade genética foi dado pelo Projeto Genoma Humano, que concluiu que somente cerca de 2% do nosso DNA realmente codifica e que, portanto, pelo menos 98% ocorrem em regiões do genoma em que não têm efeito algum […] A diferença entre os seres humanos é mínima; e a diferença que ela faz é ainda menor”. Ou seja, em menor ou maior distância somos todos parentes. A existência do Sapiens na face da Terra e não a do Neanderthal, por exemplo, é outra história.
Quando entrei na faculdade encontrei muitos “primos”. Mas na maioria das vezes esses primos nem sequer deram valor a esse suposto parentesco. Identifiquei parentes em 13 graus ou mais. Gerações de distância, nesse caso 6, não permitem que nos conectemos aos mesmos laços de afetividade que nos ligariam aos primos de primeiro ou segundo graus, por exemplo. E essa conexão é ainda menos inteligível quando o sobrenome, a identificação social a que estamos acostumados, é diferente. No caso da faculdade uma Bobsin, ou um Schütt, não consegue identificar um Trespach como familiar – claro que isso seria possível se o meu sobrenome fosse o mesmo de um ascendente materno e em grau próximo, como avó ou bisavó.
O DNA COMO MEIO DE IDENTIFICAÇÃO
O mesmo ocorre com o DNA. Todos os povos descendem de indivíduos comuns, só que em eras muito longas, muito superior aos míseros 500 anos de sobrenomes familiares que utilizamos hoje. O desenvolvimento de cada povo, etnia ou sociedade, é diferente por várias questões, mas quase sempre ligadas ao meio (área, região, continente). Hábitos, costumes, línguas e cores, isso mesmo a diferença de cores (branco, amarelo, negro), está intrinsecamente ligado as possibilidades que o meio oferece a um determinado grupo humano (Homo Sapiens Sapiens).
Para entender melhor os grupos humanos durante seu caminhar pelos continentes, os geneticistas dividiram esses grupos em haplogrupos (o de Y-DNA, do cromossomo Y, de pai para filho, e o de mtDNA, mitocondrial, de mãe para filha), associados às regiões em que surgiram e migraram, em um sistema parecido com a genealogia comum. Para cada “salto a frente” que o homem dá subdivide-se em um novo grupo genético – para distingui-los usam-se letras do alfabeto em combinação com números, que hoje vão de A a R. Assim, o meu haplogrupo, com o mesmo ancestral comum a todos os outros em uma época remota, é o R1b1b2, por exemplo. Mas esse haplogrupo vem sofrendo alterações, ou adaptações por necessidade, desde Eurasian Adam (identificado com as letras CR), como todos os outros.
Para Jared Diamond todas as nossas diferenças quanto a tecnologias e estágios de desenvolvimento, estão ligadas às áreas de ocupação humana e o que elas proporcionaram aos processos de domesticações de plantas e animais, desenvolvimento da escrita, etc. Diamond é autor de Guns, germs and steel – The fates of Human societies (Armas, germes e aço – os destinos das sociedades humanas), vencedor do Prêmio Pulitzer de 1998.
O MESMO DNA COM DESTINOS DIFERENTES
Entres os muitos exemplos de Armas, germes e aço, o dos marioris e maoris me chamou a atenção, é um exemplo de como, apesar de termos origens iguais, costumamos desenvolver sistemas de divisão:
Um grupo humano, que inicialmente habitava a da Nova Zelândia, emigrou em duas levas para ilhas distintas. Um grupo se dirigiu para uma ilha montanhosa e o segundo para uma ilha de vasta planície. O primeiro grupo, o dos marioris, não pode desenvolver agricultura, baseou sua economia na caça e coleta, e por consequência se tornou uma sociedade sem uma estrutura social complexa e pacífica – sociedades com essa estrutura não podem desenvolver sistemas de guerra e extermínio, isso extinguiria o próprio grupo. O segundo grupo, o da planície, os maoris, desenvolveu agricultura suficiente para toda a população e para o aparecimento do excedente, o que gerou uma sociedade complexa, estratificada e sedentária, pré-requisito para o acumulo de bens substanciais e desenvolver tecnologia sofisticada, transformando-se em uma sociedade também com finalidades bélicas.
Passadas algumas gerações a sociedade guerreira das planícies (os maoris) naturalmente precisou expandir seu império acabando por invadir, subjugar e exterminar os pacíficos habitantes que viviam na ilha vizinha. Com a mesma sequência genética no DNA, e em grau muito próximo de parentesco, maoris e marioris seguiram rumos distintos, e a condição de existência de uma passou pela eliminação da outra. A diferença de suas sociedades deveu-se as condições impostas pelas ilhas e não pela sua diferença genética, que não existia.
Ainda usando meu haplogrupo como exemplo, o R1b1b2 está presente na Alemanha, França e Inglaterra, assim como em Portugal e Espanha, e até na Itália, países que com língua, cultura e costumes totalmente distintos. Portam códigos genéticos idênticos, no entanto desenvolveram-se de modo diferente, moldando-se a regiões em que se estabeleceram. Alguns desses países envolveram-se em guerras de verdadeiro ódio um para com o outro.
Ainda cabe exemplificar a história do menino viking deixado na América em uma tribo de índios, no filme Pathfinder (Desbravadores), de 2007. Seu DNA era viking, mas o meio em que se desenvolveu não, tornou-se um índio de corpo e alma.
Bom, o debate é longo e não para por aqui, questões como a ética médica na manipulação de exames têm gerado grandes discussões, pois o DNA também tem seu lado negativo E relativo ainda aos mesmos preconceitos raciais do século XIX e XX, apenas sob uma nova capa: síndromes, predisposições a doenças, e a “superioridade genética” de alguns “puros”, ou “sãos”. Parece que desde a mais remota antiguidade, e mesmo com nossa cada vez mais avançada tecnologia, não conseguimos nos comportar como irmãos, encontrando sempre uma maneira de nos vermos como diferentes…