Episódio XVII de Navegar é Preciso – Sergio Agra
DE VOLTA PARA CASA
Episódio XVII de Navegar é Preciso
“Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor,
se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam?”
Fernando Pessoa
Faltam pouco mais de cinco horas para o horário previsto para o embarque no voo que me levará de volta para Brasil. Encontro-me no quarto-e-sala conjugados, no sexto piso de um prédio sem elevador, construído por volta do ano 1914, que aluguei nos últimos dois anos. A única janela tem a vista para uma grande praça.
Ontem foi feriado nacional no Brasil. Por isso houve grandes festas na Embaixada. Ao banquete seguiram-se as danças ao som de Sergio Mendes & Brasil 77. Mesmo revestido da devida formalidade, percebi que o convite que me fora feito por telefone, ainda que veladamente, destilava tibieza, Por óbvio, deixei de lá comparecer. Sou, ainda que passado tanto tempo, persona non grata, em face de meus antecedentes durante os trevosos anos do regime militar, até mesmo para o mais comezinho dos adidos daquela recalcada delegação que trazia em si inoculado o vírus opressor da implacável ditadura.
Espio — quem sabe? — por vez derradeira a milenar, encantadora e, para mim, sempre desconhecida cidade que ora dorme. São quatro horas da madrugada, não clareou ainda. Perdi o sono às duas; acordei com o pensamento distante dos detalhes e das coisas que me cercam no cotidiano das últimas manhãs. Coração e mente reavivam imagens empoeiradas pelo tempo. Rostos anônimos desfilam como num filme ensombrado na tentativa de me recordarem pedaços que um dia eu deixei pelos caminhos: a palavra dita, o sorriso ofertado, a mão estendida e o ombro amigo que acolhera e preenchera carências.
Vinicius de Morais escreveu que, — “… ao voltar, quero me regalar com papos-de-anjo, daqueles que só a mãe da gente sabe fazer, daqueles que se o sujeito for mesmo honrado, só deve comê-los metido num banho morno, em trevas totais, pensando no máximo da mulher amada…”.
Meu desterro foi um fato consumado. A anistia, não obstante, está em longínquos horizontes. Não há papos-de-anjo, banhos mornos em trevas totais. Não há quem me ouça e me fale de como verdadeiramente se encontram as coisas no Brasil, em Porto Alegre. Visto a fantasia de um rábula do diabo em causa própria. De meu só tenho a imensa e dolente saudade daquele pedaço de chão. Reminiscências da “pátria” pela qual eu aceitara o chamamento ao combate. Por “ela” eu apanhei, eu me sangrei e me violentei na ilusão de que era exatamente aquilo que “ela” exigira de mim. Lembranças dos trigais dourados, da lhanura dorsal que minhas mãos percorreram com sofreguidão dos amantes; das escaladas às suas montanhas de sutis contornos, relevos insinuantes, até atingir os rosáceos e culminantes picos. Deleitei-me naquele “ninho”, na sua nudeza. Balancei ante a visão de cada detalhe, dos rastros “nele” deixados pelas mãos em garra. Aspirei o inebriante perfume que somente aquelas paragens souberam ofertar. Desci pela encosta até a greta envolta por uma densa e alourada selva que me alucinou, corrompeu-me e me asfixiou — ah, louca morte! — não sem antes saciar todos meus desejos. Essa “pátria”, no entanto, impusera leis que — a cada subversão ao que “ela” entendia como ordem natural — me entorpeceram, arrefeceram-me o ímpeto e a paixão, sequestraram-me os sonhos, reprimiram minha inspiração, incineraram-me os poemas e os panfletos, torturaram-me a alma. E o seu fantástico exército repressor dispersou minhas nuvens e estrelas ouvintes, zombou dos meus discursos e eu, até então inflamado, minguava, perdia a efervescência e vigor. Desgarrava-me dos trigais dourados, das planícies e montanhas que me conduziam à selva densa e arrebatadora que só aquele “recanto” possuía.
Da minha janela entrevejo apenas o solitário vigilante — anjo-de-guarda noturno — cruzando as calçadas marchetadas pela bruma matutina. Escuto um pássaro madrugador; não é um sabiá. Percebo na dobra de uma esquina um menino louro; assim como havia surgido, ele desaparece a caminho do Rio Sena.
Hoje as imagens não esboçam qualquer sinal, um olhar, nem mesmo palavras que me dissessem, — “Jamais trocaria nossa amizade por diferenças políticas e ideológicas”. — “Apressa-te que o bonde Gasômetro já vem…”. — “Lembras as serenatas que fazíamos no acampamento?”. — “Recordas a noite em que bebemos vinho, falando sobre as mulheres por quem nos apaixonamos? Foram mais de trinta!”. — “Sou aquela que retribuiu o teu sorriso”. — “Eu te estendi a mão na manhã primeira do ano”. — “Eu dançaria contigo a noite toda, outra vez…”.
— Sim, meus eternos amigos, eu me recordo, pois…