Fragmentos - Litoralmania ®
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Fragmentos

Descerro cortinas e janelas. O frescor da brisa matutina invade o quarto e um estranho céu verde com a lua de cera coroada por um fino galho de árvore, as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo opaco é emoldurado pelos janelões ogivais que ornam a fachada do sobrado solidamente construído sobre pedras. É uma lua ou um sol apagado? Difícil saber se está anoitecendo ou se já é manhã no jardim que traz a luminosidade fosca de uma antiga moeda de cobre.

A cidade parece agonizar, sufocada pela densa fumaça que sai das dezenas de chaminés das fábricas e curtumes. Sinto um leve tremor pelo corpo todo. Não sei se é de frio ou de terror, ante a lembrança de algum sonho mau. Mesmo assim, com os pés descalços, percorro toda a extensão da casa até alcançar o pátio calçado com lajotas portuguesas.

Atravesso o jardim, em que sobressai o úmido perfume de ervas, e alcanço o pequeno e escondido portão de ferro que dá acesso a um beco. Por ali saio. Sigo sem um destino definido. À minha frente, estende-se a alameda atapetada de folhas cor de brasa, ladeada por um riacho caudaloso e traiçoeiro. O cenário é de desolação: a cidade submersa pelas águas do córrego. Ouço o som de meus próprios passos sobre o tapete da vegetação. Sobre uma grande pedra avisto, em posição de lótus, mirando o vazio, a jovem mulher envolta por uma longa túnica branca, igual à que eu visto. Se alguém por ali passasse, afirmaria com toda a convicção de que éramos irmãs gêmeas. Mechas do cabelo cobrem-lhe os olhos. Ao pressentir minha chegada, ela se ergue e faz com a mão um gesto para que eu a siga.

Lado a lado, percorremos um longo trajeto em silêncio. Após atravessarmos um imenso pórtico, ingressamos num penumbroso salão. Minha guia, sem que me aperceba, desaparece, por um breve momento, para, logo depois, ressurgir entre as centenas de rostos desconhecidos que se espalham pelo recinto. Pontas de cigarros queimam, esquecidas, sobre os cinzeiros. O odor acre da canha mistura-se ao adocicado dos incensos e das ervas. Trago profundamente um baseado. Sinto uma doce e louca vertigem. Os meus dedos se queimam na brasa da liamba.

O som arrastado de uma canção. O ópio. Num só trago, liquido com a garrafa do uísque barato que o homem triste e desprotegido ao lado me estende. Alguém abre uma janela. Por ali saio em disparada e alcanço o passeio lajeado que desemboca num bosque de azaléias. Tenho frio. Olho para os meus pés e vejo que permanecem descalços. Continuo a corrida. Na cancha de tênis de uma praça, cercada por altos alambrados, um casal se empenha num fantástico jogo. A bola, imaginária, voleia de uma raquete a outra, invisíveis. Eles trazem tingidas as metades de seus rostos em branco e preto. Ambos têm os olhos congestionados.

A bola ultrapassa o alambrado e cai, próxima a meus pés. Arremesso-a de volta aos inusitados tenistas. Sem nada dizerem recomeçam a disputa. Do outro lado da praça há um bando de ciganos. Dançam e cantam, alegres, ao som do violino freneticamente tocado por um velho acompanhado por um menino ao pandeiro. Os instrumentos, tonitruantes como sinos de uma catedral, ferem-me os tímpanos. Sobre o cadafalso armado no centro da praça o algoz faz acrobacias com o machado, ante o olhar impassível de cada espectador.

O condenado é um menino, criança ainda. Vertiginosamente, o machado finalmente desce. Surgida do nada, uma estreita escada de ferro em espiral eleva-se para além das nuvens insondáveis. Alcanço-a e os meus pés descalços encontram a frieza do metal. Inicio a escalada. Em meio à subida, ouso olhar para baixo. Avisto o homem e a mulher em seu acirrado jogo de tênis, os ciganos dançando e cantando, a indiferente platéia e o carrasco que lustra com langor a lâmina do machado. Mais ao longe, percebo a fumaça de um pórtico envolto por labaredas. Continuo a subida. No topo, há uma ínfima plataforma, no tamanho o suficiente para que ali me sustente. Miro o solo uma vez mais. Fecho os olhos e, naquele turbilhão, permito-me cair mansamente no vazio do incompreensível, diretamente para o regaço daquela que fora minha mãe.

* “Fragmentos” – trecho do livro “Mar da Serenidade, de Sergio Agra, que terá seu lançamento, com sessão de autógrafos, no próximo dia 27 de agosto, em Porto Alegre

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