Tragédia da boate Kiss: MP ajuíza ação civil por improbidade administrativa contra quatro oficiais do Corpo de Bombeiros
Os detalhes foram apresentados durante entrevista coletiva na sede do MP nesta tarde. Inicialmente, o Subprocurador Marcelo Dornelles ressaltou que desde o primeiro momento após a tragédia em Santa Maria, o fato recebeu atenção especial da Instituição. “Posso afirmar que os Promotores atuaram de uma forma técnica, sem deixar de buscar a responsabilização de ninguém, mas também sem apontar qualquer pessoa que não tivesse como comprovar responsabilidade”.
OS DEMANDADOS NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Em 27 de janeiro deste ano, como decorrência de fogo na casa noturna, houve a morte de 242 pessoas e mais de 600 feridos, evento que ficou conhecido como “tragédia de Santa Maria”. A ação civil pública do MP foi endereçada contra o Coronel Altair de Freitas Cunha, o Tenente-Coronel Moisés da Silva Fuchs, o Major da Reserva Daniel da Silva Adriano e ao Capitão Alex da Rocha Camillo, por terem exercido, entre os anos de 2008 e 2013, ou a função de Comandante do 4º Comando Regional de Bombeiros (os dois primeiros) ou de Chefe da Seção de Prevenção de Incêndio (os dois últimos).
Segundo os Promotores de Justiça Maurício Trevisan e Ivanise Jann de Jesus, que assinam a ação, “as condutas de todos os quatro demandados atentaram contra o princípio basilar da administração pública, de legalidade, bem como, relativamente à sociedade santamariense, ao princípio da moralidade e ao dever da honestidade”, configurando-se improbidade administrativa. Referem-se os Promotores de Justiça, com base no que demonstrou o inquérito civil, à contribuição dos quatro Oficiais do Corpo de Bombeiros, todos com poder decisório para que se implantasse e consolidasse, em Santa Maria, o uso de software denominado Sistema Integrado de Gestão de Prevenção de Incêndios (SIGPI), que afastou, em grande parte, a aplicação da normatividade estadual e, na íntegra, a legislação municipal atinente à prevenção e proteção contra incêndios. “Desse uso deturpado resultaram diretamente os Alvarás dos Sistemas de Prevenção e Proteção Contra Incêndio da boate Kiss e, bem além disso, de todas as edificações de Santa Maria que encaminharam PPCIs e obtiveram esses alvarás desde o final do ano de 2007, quando iniciada a utilização do SIGPI na cidade”, concluem os Promotores . Eles também destacaram durante a coletiva que o MP investigou, além de pessoas, procedimentos. “Foi através dessa prática que chegamos às nossas conclusões”, ressaltaram.
Eles destacam que a conduta adotada por três dos Oficiais Bombeiros da Brigada Militar demandados gerará lesão ao erário estadual, o que também se configura ato de improbidade administrativa, em termos de perda patrimonial decorrente dos recursos que deverão ser disponibilizados para indenizar as famílias das vítimas fatais e sobreviventes do incêndio na boate Kiss.
Já no âmbito da municipalidade, a investigação do Ministério Público não permite afirmar que servidores públicos municipais tenham adotado condutas que configurem improbidade administrativa, por isso os Promotores de Justiça decidiram pelo arquivamento parcial do inquérito civil. No entanto, ao constatar a existência de falhas administrativas, recomendam ao Poder Público Municipal que se façam correções em procedimentos e rotinas, sob pena de responsabilização posteriormente. Também foi encaminhada recomendação ao Corpo de Bombeiros, para que passe a cumprir a Lei Municipal n.º 3.301/1991 nos PPCIs de agora em diante. Em ambos os casos, os Promotores concederam prazo de até 30 dias para resposta escrita sobre as providências que forem adotadas em cumprimento às recomendações.
A decisão de arquivamento parcial do inquérito civil será submetida à homologação do Conselho Superior do Ministério Público.
A utilização deturpada do SIGPI foi determinante para a inclusão dos demandados na ação civil pública.
A instrução do inquérito civil do Ministério Público revelou que, após autorização do Comando Estadual do Corpo de Bombeiros, desde novembro de 2007, o 4º Comando Regional de Bombeiros, por deliberação de seus comandantes e dos Chefes de sua Seção de Prevenção de Incêndio, passou a utilizar, nos procedimentos administrativos de PPCI, o Sistema Integrado de Gestão de Prevenção de Incêndios (SIGPI). A ferramenta conteria todas as normas e diretrizes técnicas de observância exigida pela legislação estadual em tais procedimentos; no entanto, de acordo com os Promotores de Justiça, não há qualquer dado de auditagem ou certificação que comprove isso; inclusive houve referências em sentido contrário. Além disso, a utilização do software, segundo o MP, deu-se em detrimento de importantes diretrizes normativas e exigências então e ainda vigentes, deixando os PPCIs, em geral, completamente carentes de elaboração por profissionais habilitados e de anotação (ou registro) de responsabilidade técnica. Também a legislação municipal que trata do tema foi ignorada, uma vez que o SIGPI não admite inserção de outras normas e diretrizes que não as estabelecidas pela legislação estadual.
Os Promotores destacam ainda que, embora o próprio Comando do Corpo de Bombeiros, em nível estadual, primeiro de modo informal, depois com cunho oficial, tenha anuído ao SIGPI e em sequência até determinado seu uso pelos Comandos Regionais, nunca dispensou o cumprimento da legislação até hoje vigente. “É inegável que aberta e escandalosamente a legislação fora deixada de lado”, ressaltam. Também é salientado que, no inquérito civil, o atual Comandante do 4º Comando Regional de Bombeiros informou que, a partir de novembro de 2007, quando passou a ser utilizado o software, não há nenhum PPCI com projeto técnico constituído de plantas, memoriais descritivos e ART ou RRT, na Seção de Prevenção de Incêndio de Santa Maria.
Toda essa situação, de acordo com o Ministério Público, era de conhecimento dos Oficiais demandados, responsáveis pela implantação (o então Chefe da Seção de Prevenção de Incêndio do 4º CRB, Daniel da Silva Adriano) ou manutenção (os outros três demandados, no exercício das respectivas funções de confiança de Comandante do 4º CRB ou de Chefe da SPI) do uso deturpado do software SIGPI como via única para PPCIs, exclusiva de qualquer outra, em detrimento da legislação e normatização que vigorava e ainda vigora a respeito.
Durante a tramitação do Inquérito Civil 00864.00006/2013 na Promotoria Especializada de Santa Maria, foram ouvidos pelo Ministério Público 26 policiais militares bombeiros, sete servidores da prefeitura municipal de Santa Maria (dentre as quais o Prefeito) e outras três pessoas.
AS FALHAS DO EXECUTIVO MUNICIPAL
De acordo com os Promotores, a investigação apontou que, no âmbito do Município, houve falha administrativa, pois procedimentos internos de dois diferentes setores (Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana, por sua Superintendência de Análise de Projetos e Vistorias, e Secretaria de Finanças, setor de Cadastro Imobiliário), aplicando dois diferentes diplomas legais (Código de Obras e Edificações do Município de Santa Maria e Decreto Executivo Municipal nº 32/2006 ), resultaram em pronunciamentos antagônicos. Um afirmava irregularidade predial, enquanto outro autorizou o uso econômico da edificação para funcionar como boate. “No entanto, não se pode daí extrair improbidade administrativa de servidores municipais, por mais que seja imperioso reconhecer que práticas administrativas precisem ser mudadas”, explica o Promotor Maurício Trevisan.
O QUE MOSTROU A INVESTIGAÇÃO SOBRE A CONDUTA DOS SERVIDORES MUNICIPAIS
Com base no Código de Obras e Edificações do Município de Santa Maria, a Superintendência de Análise de Projetos e Vistorias da Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana, por duas vezes, no ano de 2009, negou autorização para obras na Boate Kiss, requerida pelos então proprietários da casa noturna. Mesmo sem essa autorização, e sem Alvará de Localização, a boate passou a funcionar naquele ano, sendo autuada por isso mais de uma vez pelos fiscais da Prefeitura. Apesar de não terem obtido, da Superintendência de Análise de Projetos e Vistorias, a liberação para as obras no interior da edificação, em abril 2010 os proprietários obtiveram, na Secretaria de Finanças, Setor de Cadastro Imobiliário, o Alvará de Localização, tendo como base somente as exigências do Decreto Executivo Municipal nº 32/2006. Por isso é que a casa noturna pôde funcionar em situação aparentemente regular junto à municipalidade.
“A aplicação estanque, sem interface, dos dois textos normativos, Código de Obras e Edificações do Município de Santa Maria, pela Superintendência de Análise de Projetos e Vistorias da Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana, e Decreto Executivo Municipal nº 32/2006, pelo setor de Cadastro Imobiliário da Secretaria de Finanças, decorreu da adoção de procedimentos administrativos tidos pelos servidores públicos, ao longo dos anos, como adequados à legislação, ou simplesmente legais; isto é, agiram eles sem dolo de afronta a ditames legais, ou mesmo culpa, vetores que norteiam a conclusão por conduta ímproba ou não, de quem quer que fosse”, explicam os Promotores.
Eles destacam em suas conclusões que os servidores municipais dos dois setores envolvidos na situação agiram baseados na legislação municipal que a cada qual cabia aplicar; não se intercomunicaram porque nem o Código de Obras do Município de Santa Maria determina que o setor que o analisa comunique a outros setores a denegação de autorizações de obras prediais, nem o Decreto Executivo Municipal nº 32/2006 prevê a necessidade de conferência da situação da edificação onde ocorrerá a atividade a ser permitida pelo alvará de localização.
Por fim, apuraram ainda os Promotores que a interpretação dada tanto pela municipalidade, como pelo próprio Corpo de Bombeiros, por seu 4º Comando Regional, era de que a concessão do Alvará dos Sistemas de Prevenção e Proteção Contra Incêndio – concessão que era prévia à expedição do alvará municipal de localização e até constituía requisito desta – englobaria todas as questões atinentes ao tema “prevenção contra incêndios”, incluindo a análise dos itens da chamada “prevenção passiva”, ligada às questões prediais. Por isso é que, sendo apresentado o Alvará dos Sistemas de Prevenção e Proteção Contra Incêndio no procedimento administrativo tendente à obtenção do Alvará Municipal de Localização, toda e qualquer situação relacionada à prevenção contra incêndio (ativa ou passiva) era dada como superada, ou seja, não ensejava mais questionamentos no âmbito do Município.
O PREFEITO CEZAR SCHIRMER
No que se refere à possível responsabilidade do Prefeito Cezar Schirmer, concluíram os Promotores que a edição e coexistência de diplomas legais que aparentemente não se integravam, a par de não constituir por si própria uma conduta configuradora de improbidade administrativa, não pode sequer ser atribuída ao atual primeiro mandatário municipal. Isso porque o Decreto Executivo Municipal nº 32/2006, que regra a expedição do alvará de localização (e baseou esse alvará no caso da boate Kiss), é de gestão administrativa anterior ao primeiro mandato do atual chefe do Poder Executivo (que começou a governar a cidade em 2009). E o Código de Obras do Município de Santa Maria, embora seja lei complementar municipal editada em 2009, é, na parte que trata “Da Circulação e Sistemas de Segurança, Prevenção e Combate a Incêndio”, uma reprodução senão fiel, muito aproximada do que já estava previsto no antecedente Código de Obras, a Lei Complementar Municipal nº 32/2005; portanto, a disciplina do assunto “prevenção a incêndio” não é novidade legislativa trazida pelo atual Prefeito.
Ouça aqui o boletim da Rádio MP.
Clique aqui para ler a íntegra da Ação Civil Pública ajuizada pelo MP.
Clique aqui para ler a Recomendação ao Comandante do 4º CRB e ao Chefe da SPI.
Clique aqui para ler a Recomendação ao Prefeito Municipal.
Clique aqui para ler a promoção de arquivamento parcial do inquérito civil.