31 de março de 64
Ainda havia na minha lembrança os dias que passei em casa quando do Movimento da Legalidade. Naqueles idos, com as aulas suspensas, eu podia brincar e jogar futebol sem o compromisso dos temas de casa. Até que, certo dia, no fervor dos acontecimentos, fui proibido de sair. Não podia ir nem ao menos à frente de casa (somente muitos anos depois eu soube que, naqueles dias, Porto Alegre estava sob a ameaça de bombardeio). Fiquei mais de dez dias sem ir ao colégio, e torcia para que os políticos não se entendessem, para que a situação perdurasse infinitamente.
Lembro dos vizinhos que se tornaram mais calorosos e solidários; e recordo da faina de guardar mantimentos, de proteger a casa. E isso provocava em mim, criança, um ar de conchego. Mas os dias da Legalidade passaram depressa demais! E logo veio a volta às aulas e à rotina enfadonha.
Em março de 64 parecia que tudo ia se repetir. Se quisessem depor o presidente – para mim – pouco importava, desde que houvesse muita confusão; que os colégios parassem; que os alunos ficassem em casa.
Lá em casa, pelo rádio, meu pai acompanhava os acontecimentos através de um grande e potente rádio, e acreditava que Jango e Brizola repetiriam a Legalidade.
Lembro de uma madrugada em que meu pai entreabriu a janela da sala. Ele havia despertado por um ronco surdo de motores e pela batida de ferros contra ferro que, no silêncio da noite, ecoavam assustadores. Levantei-me e, ao seu lado, vi passar um comboio de caminhões e tanques do exército. Foi uma cena terrificante que trago na memória: aos meus doze anos, senti medo de que uma guerra pudesse acontecer, e passei intensamente a desejar que as aulas logo voltassem.
Os dias seguintes foram de apreensão, de notícias desencontradas, de incertezas. Por fim, o presidente se foi, e com ele uma leva incontável de pessoas perseguidas pela “revolução”.
Houve até quem prenunciasse que os vitoriosos não durariam seis meses no poder. Nem podiam imaginar que a névoa espessa e escura que desceu sobre o país perduraria por vinte longos anos!