Colunistas

Concerto Andaluz IV

Alegro agitato

Hector Biscarra disparou o seu gargalhar bucaneiro e fechou a mala estendida sobre a cama da sórdida pensão em Porto Velho. Os negócios saíram de acordo com o planejado.

Com a mercadoria despachada e os agentes aduaneiros regiamente “recompensados”, ganhara, assim, quase três dias do que imaginara seria a viagem.

Sua mulher certamente ficaria surpresa com a volta antecipada. Cerrou os olhos, aspirou profundamente, dilatando as narinas, como se pudesse sentir o cheiro do sexo de Angélica Elisa. Era madrugada, ainda, quando, no velho Studebacker de praça, cruzou os becos empoeirados da periferia da capital de Rondônia.

Passava da meia-noite quando Biscarra desembarcou no Aeroporto Salgado Filho sob a chuva miúda e a vigilância da Polícia Federal.

O Brasil já não era mais o mesmo: escândalos pipocavam na Câmara, no Senado e na Esplanada dos Ministérios e adubavam negras nuvens que pairavam sobre o Palácio do Planalto. O affaire Waldomiro Diniz fora apenas a ponta do iceberg, o estopim de tudo. Mais tarde, a interminável novela do mensalão. E muito ainda estava por vir.

O colombiano ignorou o aparato; desde que os “federais” não desconfiassem dos seus negócios e se preocupassem apenas com a corrupção escancarada e a canalhice política, estava pouco se lixando. Sacudiu com desdém os ombros e se dirigiu ao ponto de táxi. Instruiu ao motorista para que seguisse, sem qualquer pressa, para a Avenida 24 de Outubro.

Era-lhe agradável o ruído da chuva de encontro à lataria do automóvel. Olhar o reflexo dos letreiros luminosos de néon no asfalto molhado acalmava-lhe as tensões.

Chegando ao prédio onde morava, percebeu, irritado, que as chaves haviam ficado nos bolsos de algum paletó agora emalado. Nêgo Boni, o segurança do condomínio, não se encontrava na portaria. Acionou o interfone.

Angélica Elisa, ao ouvir a voz do marido, esboçou a mais feliz e simulada das surpresas. Ato contínuo, ela jogou sobre o corpo nu – onde apenas se vislumbrava um precioso solitário de diamante incrustado à delicada gargantilha de ouro a cingir-lhe o pescoço – uma belíssima túnica de seda branca com trancelins dourados e correu para a suíte onde Miguel, assustado, vestia, ao mesmo tempo, cuecas e calças.

Ordenou para que ele se aligeirasse e a seguisse até a área de serviço. Ali, apontou-lhe, rente à parede externa do edifício, a chaminé do incinerador. Descesse pelos estreitos degraus de ferro que serviam de apoio para a limpeza do conduto, alcançaria o estacionamento. Miguel custou a acreditar que a amante falasse sério. Aterrorizado, mirou os sete pavimentos que o separavam do solo. Ela foi taxativa:

– Ou você foge pelo tubo do incinerador ou se defronta com o meu marido.

Miguel escalou o parapeito da área de serviço e iniciou a descida. Conhecia a vida pregressa do colombiano.

Ao entrar no apartamento, Hector Biscarra foi recebido por uma Angélica Elisa belíssima e surpreendentemente lasciva.

No aparelho de CD’s, Maria Callas gorjeava a Habanera.

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