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Concerto Andaluz – VI

Andante con dolore – I

Quinze dias após a madrugada infinita, Miguel lembra com terror a volta, sem qualquer aviso prévio, de Hector Barra: O colombiano acionara o interfone do apartamento no sétimo andar. Ato contínuo, Angélica Elisa jogou sobre o seu corpo nu uma belíssima e alva túnica de seda com trancelins dourados e correu para a suíte onde Miguel, espavorido, vestia, ao mesmo tempo, cuecas e calças.

A mulher ordenou ao jovem amante que se aligeirasse e a seguisse até a área de serviço. Ali, próxima ao parapeito, apontou-lhe a chaminé do incinerador, rente à parede externa do prédio de apartamentos. Instruiu-o para que descesse pelos degraus de ferro que serviam de apoio à limpeza do conduto e alcançasse o pátio do estacionamento. Miguel recorda-se, ainda, ter escutado Angélica Elisa ligar o aparelho de som. Maria Callas gorjeava, lasciva, a ária Habanera.

Com essas reminiscências, ele desce as escadarias da Igreja Nossa Senhora das Dores, de onde ele vislumbra, daquela parte velha e triste de Porto Alegre, o pôr-do-sol. Havia o prenúncio de uma tempestade. Na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d’alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d’água que levou um tempão a cair, e durou… e durou…

No botequim, próximo aos portões da igreja, há um telefone. Tenta, inutilmente, uma ligação. Numa mesa, coberta por uma puída e engordurada toalha com desenhos em losangos brancos e vermelhos, entre um copo e outro de canha, o homem, ao violão, consola-se.

O Homem: (Plangente).

– “E, pode ser que morrendo,

Dele então tu te lembrasses:

Se visses outro defunto,

Ou se outra vez tu dançasses…”

Os tristes versos da canção misturam-se aos de uma rapsódia que irrompe da alma de Miguel:

A cintilação da tarde terminal sucumbe às sombras primeiras da noite.

Os botequins da Cidade Baixa acolhem

os bêbados e cativos,

quiméricos sonhadores e poetas, tementes ao açoite

dos amores jamais vividos.

Silenciosas testemunhas, os letreiros coloridos

dos cabarés da Farrapos sabem da busca de cada um.

Os “luminares” da Ilha da Fantasia apontam a solução

antropofágica para a erradicação

da pobreza e da fome no Brasil

(concordemos, contando até mil!!!)

decretando a sina

da prostituta ainda menina,

da professora, do funcionário público, da concubina.

Contemplam, complacentes, o lucro e o riso desenfreados

dos banqueiros, corruptos e estelionatários.

Livre é a concussão.

A Lei – como prêmio de consolação –

Acaricia o injustiçado

fruto do estupro – indesejado -,

anencéfalo – inquestionável monstruosidade -,

a fome, a carência, a falcatrua, a desilusão.

Casas e arranha-céus flambados,

janelas de algodões-doces: um gatuno nos telhados,

um seqüestrador de tocaia.

Cortes, cicatrizes,

sulco de arados.

O Theatro São Pedro vomita na Praça da Matriz a platéia da última sessão.

Desce o pano. Eu, the clown,

Transfiguro-me em marginal,

vago sem rumo para (des)nutrir

uma platéia que não ri, não chora, não esboça um sinal de vida sequer.

Silêncio no proscênio. Amanhã, tudo há de se repetir,

ao toque de um botão no painel central.

No rio, oferendas à Mãe Oxum, divino o manto dourado.

Da garganta o canto; esperança em cada oração.

Com o firmamento carente de astros e estrelas,

busco, incessante, a voz suave que embalou meus sonhos na

praia em que a saudade ainda faz morada.

Quero ter os pés-descalços sobre espumas e a areia a envolver,

novamente, braços e pernas e bocas.

De repente, me vejo sozinho,

cantando para desertos de pedra e espinho.

Surdos.

Mudos.

O amanhecer corrompe-me as retinas, me resseca os lábios e

impõe-me mudar a realidade.

Não mais só, não mais sem ter aonde ir.

Fazendo-me ver,

fazendo-me sentir,

fazendo-me valer,

fazendo-me ouvir,

olvidando minha dor.

Por favor, Angélica Elisa, não se esqueça de mim,

teu amante e sempiterno sonhador.

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