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Pif Extradulado

Meu pai saíra de casa no sábado. Já era noite de domingo e ele sequer havia voltado.

Minha mãe estava preocupada. Não com ele; estava acostumada às suas ausências. Estava preocupada conosco. Éramos sete irmãos. E o choro dos sete, ao mesmo tempo, perguntando pelo pai certamente a deixava naquele estado de apreensão.

Mais que preocupada e apreensiva. Extremamente angustiada por não saber o que dizer.

 Eu era o mais velho. A mim cabia, entre outras obrigações, saber onde estava meu pai. Então, me foi ordenado, vai procurar o teu pai e dizer-lhe que eu não sei mais o quê fazer para acalmar as crianças. Vai! Tu que sabes, sempre, onde ele está.

Antes de sair, fiz uma rápida recorrida mental, pelos lugares que me eram conhecidos: O bar. Não, o bar do seu Rodrigues, não! Já teria algum sinal, algum amigo, viria dizer que ele estava lá. O Bar do Chimango, também não!  A cancha de osso? Não, não era temporada. Não havia fazendeiros vendendo gado e esse tipo de jogo, muito caro, estava fora de tempo. A “zona”! A “zona” também não! Não havia dinheiro bastante para financiar duas noites de cerveja e mulheres. Não! Na zona, tudo é a vista!

De repente, um estalo: o carteado! O pif. A “Cartepa do Baixinho”, no Clube Ipiranga. O “Baixinho”, ecônomo do Ipiranga, mantinha, valendo-se da sede do Clube como fachada para torná-la legal, uma mesa da carpeta.

Achei que era lá que eu deveria procurar. E não me enganei. Lá estava meu pai, sentado numa mesa redonda, coberta com o inconfundível pano verde, com mais oito parceiros. Sobre a mesa, tocos de cigarro em descascados e malcheirosos cinzeiros. Na frente de meu pai, um mar fichas coloridas de todos os tamanhos e valores.

Quando meu pai me viu, trocamos um sorriso. Não houve surpresa de sua parte. Não sentiu qualquer vergonha por ter sido descoberto pelo filho mais velho numa mesa de carpeta. Éramos amigos. Embora a grande diferença de idade – eu deveria ter uns dez anos e meu pai perto dos cinquenta – éramos amigos. Irmãos. Os nossos olhos trocavam mensagens, sem necessidade de qualquer palavra. Meu pai me disse com o olhar, cuida meu filho, quanto dinheiro eu ganhei. Eu lhe respondi, pelos mesmos meios, não te preocupa, pai, com a bronca que vais levar. O que importa é poderás pagar o armazém do seu Rodrigues, do seu Olinto, a farmácia e o açougue.

Para agora! Garante o que tens e vamos embora. Larga tudo! Troca as fichas e vamos nos mandar,  “à la muda “, como dizem os correntinos. Meu pai entendeu o recado, mas continuou sentado. No carteado existem leis. Quem está ganhando tem que, para se retirar, ter o consentimento  de quem está perdendo. O silêncio  de todos dizia que o jogo haveria de continuar.

Já era muito tarde. Não me lembro da hora, mas era muito tarde. Me quedei num canto, silêncioso. O pensamento ia da carpeta para casa aonde minha mãe esperava que eu voltasse com uma noticia de meu pai, ou com ele próprio. Meus irmãos, alheios a tudo, ainda deveriam estar chorando.

Mais algum tempo se passou, um longo e infindável tempo. Foi, então, que levantei os olhos e vislumbrei meu pai, a mesa, os parceiros, os cigarros e uma fumaça intensa encobrindo a todos. Só não avistei as fichas que, até há pouco, estiveram ali, bem à frente de meu pai. Haviam sumido. Para uma derradeira partida vi meu pai retirar de seu pulso um relógio e colocá-lo sobre o pano verde.
Recebeu as cartas, me olhou e me disse, num código só nosso,  que havia saido “pifado”., com um par  de sete esperando outro sete. Um pifinho mixuruca, de trinca, mas que daria para salvar o relógio e uns duzentos contos, o montante  da última partida.

Foram os mais longos minutos de minha vida, até que alguém gritou:

– Deu! – e bateu o pif, na frente de meu pai. Arrebanhou as fichas e, de contrapeso, o relógio de meu pai.  Todos se levantaram e foram saindo.

Amanhecia. Meu pai acendeu o último Continental sem filtro, deu uma longa baforada, me estendeu a mão e fomos caminhando pela rua João Brasil. Entramos na Independência e, depois, pegamos a Canabarro, rumo à casa.

Nenhuma palavra foi dita. Amigos não precisam falar.

Invadiu-me, ao  mesmo tempo, um sentimento de orgulho  pela serenidade de meu pai e uma tristeza imensa ao pressentir  que ele, apesar disso, estava sofrendo. Havia perdido tudo. Restava-lhe, somente para curar sua dor,  a silenciosa amizade de seu filho que, como um cão fiel, seguia o dono.

Abrimos a porta e entramos. Lavei o rosto, tomei um café preto, engrossado com farinha de mandioca, apanhei meus livros e me mandei para a aula, porque era segunda feira e eu teria prova de matemática.

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