A Reforma Protestante
31 de outubro de 1517, Wittenberg, Alemanha. Martin Luther (1483-1546) *, monge agostiniano e professor de Teologia na recém fundada Universidade de Wittenberg, fixa na porta da igreja do castelo 95 teses sobre o comércio de indulgências, realizado na Alemanha por Johann Tetzel (1465-1519), pregador dominicano. Tetzel chegara a Saxônia como representante do papa Leão X com permissão para conceder a indulgência, o perdão pelos pecados, os de antes, agora ou depois, dado mediante o pagamento de certa quantia em dinheiro. O dinheiro tinha destino certo: a construção da Basílica de São Pedro, em Roma.
O fato de pregar teses na porta da igreja não era incomum, pelo contrário dever de teólogos, doutores e acadêmicos, era o costume na época. Eram colocadas em um lugar onde todos pudessem ler e, se de interesse de algum outro doutor ou acadêmico, fossem debatidas e defendidas pelo proponente.
Outros doutores já vinham debatendo sobre a luxuria e as extravagâncias de Roma, inclusive os superiores de Luther como Johann von Staupitz (1465-1524) e um dos grandes pensadores da época como Erasmus Desiderius de Rotterdam (1465-1536). Mas só Luther teve a coragem de seguir adiante em suas ideias. Para o grande humanista Luther havia ido longe demais, quanto a von Staupitz o discípulo havia superado o mestre.
As teses não eram loucuras de um “padre bêbado”, ou meras “questões fradescas”, como disse Leão X, mas um apelo a consciência da moral cristã. Diz a tese 82: “Por que é que o papa não limpa o purgatório, por santo amor, e por causa das próprias pobres almas penadas, isto é, por um motivo realmente válido, quando, por outro lado, resgata almas incontáveis pelo mísero dinheiro, a fim de construir uma igreja, isto é, por um motivo muito insignificante?”.
É importante frisar aqui que na Idade Média a questão da salvação era algo aterrorizante para as pessoas, um Deus julgador e punitivo estava pronto a mandar para o purgatório ou inferno todas as almas pecadoras. É nesse contexto que Luther vem combater a exploração que a Igreja fazia dessa imagem divina. A possibilidade de livrar a si, ou um parente próximo, do purgatório pela eternidade através do dinheiro era muito confortante. Em um momento você podia estar no inferno e com o “tilintar da moeda no cofre” saltar para o céu dos salvos pela “graça divina”.
As 95 teses de 1517 foram o marco inicial do que se denominou de a Reforma Protestante, ou Luterana. Mas Luther não dividiu a Igreja Cristã, ela nunca fora unida, apenas na Europa Central, sob a tiara papal, ela parecia mais coesa. Foi a Igreja Católica Apostólica Romana, que Martin Luther procurou reformar e acabou dividindo em 1517.
A IGREJA CRISTÃ NUNCA FOI UNIDA
As tensões teológicas vividas pela cristandade no século XVI e seguintes não eram, ao contrário do que se possa pensar, algo novo para a igreja do nazareno. A igreja cristã já se digladiava entre católicos romanos, ortodoxos, e outras igrejas menores da Ásia Menor, África e Oriente Médio, desde que Cristo fora pregado na cruz, em Jerusalém, na década de 30 d.C., e seus discípulos se dispersaram pelo mundo conhecido de então pregando a nova religião.
Já escrevi aqui nesse espaço, em maio, um pouco da evolução histórica da Igreja Cristã (coluna de 04.05.2009 – Igreja Cristã: De Cristo ou dos homens?), sendo assim já sabemos de antemão que o cristianismo nunca foi unido como querem fazer passar algumas igrejas, para que possa haver uma “verdadeira igreja de Cristo”. A formação de suas crenças e dogmas ocorreu em um processo contínuo ao longo do primeiro milênio, sob intensos debates, em um bom número de vezes atendendo interesses pessoais, políticos e locais.
A primeira grande divisão político-administrativa, na Europa, ocorreu no século XI. Após séculos de disputas, que vinham desde os tempos da divisão do Império Romano em Ocidente, com capital em Roma, e Oriente, com capital em Bizâncio (Constantinopla), no século V, a igreja também se separou. Isso ocorreu em 1054, e é conhecido como o Grande Cisma do Oriente. Nesse ano a Igreja de Bizâncio, que era liderada por um Patriarca, título honorífico dado inicialmente aos Bispos das principais comunidades cristãs e ainda hoje usado pela Igreja Católica para algumas cidades como Lisboa e Veneza, desligou-se oficialmente da Igreja Católica Apostólica Romana passando a denominar-se como Igreja Católica Ortodoxa, tendo como primeiro chefe o Patriarca Miguel I Cerulário que retribuíra a excomunhão recebida do papa de Roma com a excomunhão do mesmo. Nem é preciso mencionar que a igreja do oriente, a exemplo dos cristãos do ocidente, se dividiu em várias comunidades religiosas menores como os maronitas, coptas, melquitas, etc., além dos gregos, russos e armênios que são em maior número, cada um com rituais diferentes.
Durante as Cruzadas cristãos romanos e bizantinos lutaram ora do mesmo lado contra os islâmicos, ora entre si. Na quarta Cruzada (1202-1204) o exército cristão (católico) saqueou a capital bizantina (ortodoxa), levando para a Itália enorme quantidade de ouro, relíquias religiosas e escravos.
Passada a época das Cruzadas novamente questões políticas, notadamente marcantes dentro do cristianismo, sacudiram a igreja no século seguinte. Entre 1378 e 1417, período conhecido como o Grande Cisma do Ocidente, a cristandade teve papas, e “antipapas”, em Roma e Pisa, na Itália, e Avignon, na França, simultaneamente.
Um século antes da Reforma Protestante Jan Huss (1369-1415) foi queimado vivo na fogueira por defender e divulgar as ideias de John Wycliff (1320-1384), professor em Oxford. Huss, assim como Wycliff acreditava que o cristianismo se corrompera ao longo dos séculos – mais do que óbvio. Ambos eram doutores em teologia, mas Wycliff teve mais sorte do que Huss, escapando ileso aos ataques que fazia a Igreja, principalmente no período do Cisma do Ocidente.
A REFORMA LUTERANA
É verdade que Luther nunca quis separar a Igreja, assim como também é verdade que sua língua e pena eram afiadíssimas. Logo após a publicação das 95 Teses e sua consequente popularização por toda a Europa tornou-se impossível recuar diante de uma igreja que não queria debater. Sentindo-se seguro pelo apoio dado pelos nobres alemães que lhe garantiram o que nenhum outro reformador tivera antes, auxílio financeiro e do exército se preciso, Luther passou a discutir, escrever e publicar teses e ideias sobre todos os dogmas vigentes, criou hinos até hoje cantados na Igreja Luterana, como Ein feste Burg ist unser Gott, Castelo forte é nosso Deus, de 1528,que em português ficou conhecido como Deus é castelo forte e bom, reformulou também a missa e eliminou da liturgia muitos símbolos e ornamentos.
A base teológica de Luther pode ser resumida, por ele mesmo, da seguinte forma: somente pela Escritura Sagrada, pela graça, pela fé e por Jesus Cristo. Essa estrutura teológica simples combatia a moral vigente, o perdão seria dado pela ação e graça de Deus e não pelo papa e pelo dinheiro. Antes mesmo de pregar as teses em Wittenberg Luther tentou em vão convencer seus superiores do erro que cometia a igreja.
Sentindo-se fortalecido pela ampla aceitação de suas ideias em toda a Europa, escreveu em 1520 três livros que são fundamentos para a formação da nova igreja: À Nobreza Cristã da Nação Alemã, onde abordou questões sobre o clero e a moralidade do mesmo; Do Cativeiro Babilônico da Igreja, onde discutiu sobre o batismo e a eucaristia; e Da Liberdade Cristã, onde escreveu uma reflexão bastante interessante a meu ver: “Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém, um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos”. Uma interpretação das frases do apóstolo Paulo em carta aos Coríntios (I Cor 9.19) e aos Romanos (Rm 13.8). Em Da Liberdade Cristã Luther, apesar do fundamento básico do luteranismo ser a salvação pela fé, também indica que a obra – o serviço comunitário, a ação social de modo geral, também é dever do cristão e a própria consequência da fé na doutrina de Cristo.
De 1529 são o Catecismo Maior e o Catecismo Menor, onde trabalhou de forma resumida e simples os fundamentos da religião cristã, para que fossem usados na escola e na família.
Um homem de seu tempo também escreveu artigos polêmicos e que até hoje são feridas dentro do luteranismo, como os escritos de 1538, 1543 e 1544, onde atacou ferozmente os judeus por “suas mentiras” e incapacidade de aceitar a doutrina cristã. Nada que a igreja da época também não fizesse. Igualmente polêmico é o texto onde atacou os camponeses em revolta contra a nobreza, entre 1524 e 1525. Referiu-se aos camponeses como uma “turba de cães danados e raivosos”. Em verdade ele havia quebrado o poder e a influência da igreja permitindo que problemas sociais e econômicos viessem à tona. Permaneceu do lado da nobreza a quem pregava que a igreja devia ser subordinada, o que colaborou para a disseminação do luteranismo entre os nobres e permitiu que a Reforma Protestante obtivesse êxito já que dessa forma poder do papa e da Igreja eram enfraquecidos.
PROTESTANTES
Ameaçado de excomunhão em junho de 1520, Luther queimou a bula papal em 10 de dezembro. Talvez essa fosse a data definitiva da Reforma, agora não haveria mais volta, foi excomungado em 3 de janeiro de 1521. Chamado a comparecer a Dieta, assembleia de nobres, em Worms, para se retratar, pronunciou diante do Imperador que “se eu não for convencido por meio do testemunho das Escrituras e por argumentos absolutamente racionais – pois, não acredito no papa e em concílios somente, uma vez que é óbvio que eles erraram mais de uma vez e se contradisseram -, então, em vista das passagens das Sagradas Escrituras que acabei de citar, eu me sinto dominado pela minha consciência e prisioneiro da Palavra de Deus. Por isso mesmo, não posso e não quero renegar nada, pois fazer algo contra a consciência não é seguro nem saudável. Deus me ajude, Amém”. No dia 26 de maio de 1521 Carlos V, Imperado do Sacro Império, assinou o Édito de Worms, banindo Luther e seus seguidores do Império.
Auxiliado por Friedrich III (1463-1525), conhecido como Frederico, o Sábio refugiou-se no castelo de Wartburg, em Eisenach, sob o pseudônimo de Jörg. Católico fervoroso, dono da terceira maior coleção particular de relíquias sagradas do mundo cristão, e príncipe eleitor do Império pela Saxônia, Frederico salvou Luther da morte e a Reforma da ruína. Em Wartburg “Jörg” traduziu a Bíblia para o alemão, uma das suas maiores contribuições a nação alemã e tornou popular, entre os protestantes, a tradução da Bíblia em latim para o vernáculo, possibilitando acesso fácil aos livros sagrados.
Em 19 de abril de 1529, na Dieta de Speyer, Carlos V decretou que o luteranismo seria aceito nos estados alemães que já haviam aderido a Reforma, o restante permaneceria católico. Como o Sacro Império era uma colcha de retalhos, formado por pequenos estados, havia muito mais interesse político do que religioso em jogo. Os príncipes alemães protestaram que já haviam aderido a Reforma, de onde surgiu a expressão “protestantes”.
Em 25 de junho de 1530 é apresentado ao Imperado, em Augsburg, o texto de Philipp Melanchthon (1497-1560) que ficou conhecido como a Confissão de Augsburg que delineava a normas a serem seguidos pelos luteranos.
As brigas atingiram outro campo então, a armada. Massacres de um lado e de outro. Novamente o cristianismo agia em nome de Deus, mas com ações humanas. E isso não ficou relegado ao passado, infelizmente.
Em 1555, o Sacro Império Romano Germânico (católico) e a Liga de Schmalkalden (protestante) estabeleceram a Paz de Augsburg e o “Cujus regio, ejus religio” (de acordo com a sua região, sua religião) estabelecendo então a divisão entre os cristãos alemães. Assim, muito do que você acredita hoje também está ligado a um passado político. Se seus ancestrais (alemães e os de países não latinos) eram de uma região de católicos, você consequentemente tornar-se-ia católico, não havia outra opção. A chance de mudar ocorria quando o conde, príncipe ou rei aderia a Reforma, então você dormiria católico e acordaria luterano ou vice-versa. A liberdade de pensamento e de se acreditar naquilo que se quer e pensa só veio muito tempo depois da Reforma. Regiões onde havia os dois credos sofreram muito com guerras e combates frequentes. A velha disputa pela razão em nome de Deus.
LUTHER É ATUAL?
Martin Luther faleceu em 18 de fevereiro de 1546 na mesma Eisleben onde nascera 63 anos antes, em 10 de novembro de 1483. Casado, após o inicio da Reforma, em 1525, com a ex-freira Katharina von Bora, foi pai de seis filhos.
Se fizemos hoje críticas ao imediatismo, ao fanatismo e principalmente ao comércio dentro do cristianismo, devemos em parte as ideias e ações de Luther. Passados 492 anos do início de sua reforma estamos hoje nos vendo às voltas com as mesmas inquietações. A igreja cristã exige dinheiro para a construção de imensos “templos da fé”, têm em seu meio clérigos depravados, e promete a salvação eterna à gente de pouca instrução, incapaz de compreender que alguns dogmas foram criados pela igreja e não por Deus ou Cristo. Seria bom, guardadas as proporções e se ajustando o tempo e espaço, refletir sobre o que aquele monge agostiniano pregou há quase quinhentos anos.
* Acredito ser um erro traduzir para o vernáculo um nome próprio e ainda pior um sobrenome. Aliás Lutero não é tradução de Luther, mas sua forma “aportuguesada”. Se essa regra fosse usada de maneira uniforme teríamos que chamar de “Miguel Sapateiro” o heptacampeão mundial de F-1 Michael Schumacher. A utilização, e popularização, de “Lutero” no Brasil, para mim, é um equívoco grave, mas sei também que é como pregar no deserto, para utilizar uma expressão bíblica. Corro o risco assim mesmo.