Santherminia – Parte II
Os crimes passionais, como o cometido por maribete santana pereira, ou de caráter político, como o de raimundo góes, e tantos outros causos, deixariam qualquer cristão de cabelo em pé, Frei marcelino ingracio d’arisbo, anos mais tarde, evocaria aquelas más lembranças nas pescarias domingueiras, depois de dizer a missa.
Maribete, primogênita do médico homeopata do povoado, doutor godofredo santana, flagrara francis jacob, a Loba Solitária, colunista social do semanário “a voz do ibirapuitan”, com ederon pereira, seu marido, os dois nus e abraçados, completamente bêbados, num catre imundo, aos fundos do depósito do bolicho do fagundes. Ela fulminou o pederasta com um tiro entre as sobrancelhas. Quanto ao marido, de quem nunca mais se soube paradeiro e estada, contam que, ainda mal curado do porre, o avistaram em debandada pros lados de rincão de são miguel, alertado de que a mulher contratara os serviços do negro eleutério para capá-lo.
O crime do estancieiro raimundo góes tivera desenrolar mais trágico. Getulista de primeira hora, góes se indispusera com alcides fernández, presidente do diretório da UDN na região e defensor incondicional do discurso de carlos lacerda. Nos salões iluminados para o baile das debutantes do clube caixeiral, no brumoso setembro de mil novecentos e cinquenta e quatro, quando a política nacional se encontrava no caldeirão efervescente sob a pressão dos últimos acontecimentos, fernández, assim mesmo, ousou afirmar, com todas as letras e para quem quisesse ouvir,Getúlio de caudilho não tem nada, na hora da “cobra fumar”, borra-se nas botas.
Góes, de supetão, interrompeu a dança e deixou a esposa no meio da pista, atônita, sem entender o porquê do gesto abrupto do marido. Aos empurrões, góes foi afastando os pares que se interpunham entre ele e a mesa em que alcides fernández e a família confraternizavam. O crooner rasgava-se nos últimos versos de “por una cabeza”, quando o tiro disparado da beretta de góes explodiu a têmpora direita de fernández, fazendo-o tombar sobre o colo da filha, maculando o belíssimo vestido da debutante.
O que mais impressionaria frei marcelino, no entanto, fora o misterioso caso de frei roque balen, lá pelos idos de mil novecentos e dezoito, quando a gripe espanhola grassava aquelas plagas. Recém-chegado na paróquia, frei balen fora informado pelo acólito de que as festas de nossa senhora do rosário estavam próximas. Nessas ocasiões, os negros das vilas ribeirinhas homenageavam a santa, partindo do arraial, junto às barrancas do ibirapuitan, entoando cantos em ioruba e dançando o quicumbim. Portavam bandeiras e arranjos de flores que, ao final das danças, depositavam aos pés da imagem da nossa senhora, na igreja da matriz. Lívido, o frade, numa postura que não comungava com a linha apostolar de seus irmãos de ordem, não deixara por menos, Negro na minha igreja não faz festa! Velho zita, o rei do terreiro, sabedor, limitara-se a profetizar, Santherminia não há de ser mais a mesma.
Ao amanhecer do dia seguinte, pesadas nuvens cobriram os céus e obrigaram os moradores a manterem acesa a chama das lamparinas como se noite fosse. Vindo do rio, um vento mormacento invadiu em remoinhos todos os becos e ruas da aldeia, fazendo bater portas e janelas, arrebatando de cordas e cercas as roupas postas a secar nos quintais, erguendo as saias pregueadas das normalistas e desmanchando-lhes o cabelo. Essa estranha ventania, que causou às pessoas um agourento presságio de fim do mundo, convergiu para a praça, defronte à igreja da matriz. O inusitado perdurou por sete dias, findo os quais frei roque balen foi encontrado morto, totalmente despido, aos pés da imagem de nossa senhora do rosário. A partir de então, na semana que antecede aos festejos dessa santa, a paisagem se transforma: o céu adquire uma tonalidade pardacenta, carregado de nuvens plúmbeas, como que se abaixassem, como que querendo afogar a terra, as luzes são acesas dentro das casas e o vento mormacento domina todos os recônditos do povoado, até o centro da praça.