Ficção e realidade
Se, de um lado, a obra de Júlio Verner não possui compromisso com a condição humana, “1984”, de George Orwell, é uma das mais candentes críticas ao Estado. Tanto Verner, como Orwell, suponho, jamais imaginaram que um dia as suas ficções literárias haveriam de se transportar para a realidade.
Hoje, as potências militares possuem submarinos movidos a energia nuclear. O controle do Estado sobre o indivíduo está cada vez mais sofisticado. Os tentáculos do “Grande Irmão”, muito além do que Orwell imaginou, estão presentes em nossas vidas e no nosso cotidiano.
Ao sair de onde eu moro rumo a Osório, sou implacavelmente acompanhado por um sistema de câmeras praticamente em todo o caminho. Através do meu celular podem vigiar o meu destino. Acabou-se a privacidade do homem pacato e de bem. Sua conta bancária pode ser rastreada e bloqueada, bastando para isso um simples comando no computador; a conversa telefônica também pode ser grampeada, e até a entrada e a saída de um marido infiel fica registrada pelas câmeras do motel.
Nos aeroportos, bancos, prédios públicos – quase todos – possuem detectores de metal que dão alerta a um simples clipe que, ao acaso, se traga em algum bolso; logo acende uma luz vermelha e soa um apito. É o quanto basta para sermos reféns de truculentos guardas, e constrangidos, sem pudor, a abrir bolsas e malas, deixando à mostra tudo o que se carrega – da pasta de dentes à ceroula suja. Nestes casos, sequer há bom senso, pois mesmo sendo velho ou cadeirante – soado o alarme, são vistos, a princípio, como meliantes.
Neste desenfado entre o imaginário e o real, o complexo militar-industrial desenvolveu um avião pilotado à distância. Pois através desta máquina voadora, esta semana Abu Yahya aL-Libi, o número 2 da Al-Qaeda, foi atingindo e morto por um disparo comandado por um piloto que conduzia o avião através de controle remoto a quilômetros de distância do alvo. Além do terrorista o disparo matou outras cinco pessoas, sem que se saiba se elas mantinham ligações com Abu Yahya aL-Libi. Morreram porque estavam, simplesmente, próximas ao terrorista.
Concluo que, embora o avião possua tecnologia altamente sofisticada, sua precisão não é cirúrgica. Quer dizer, sobra também para quem está próximo ao alvo, seja cúmplice ou inocente, adulto ou criança, o que torna o artefato ainda mais terrível. E indago cá com os meus botões: neste caso quem é, afinal, o mais pusilânime, o piloto ou o terrorista?
Nem Verner, nem Orwell, jamais imaginaram algo semelhante. Esta máquina voadora é o típico caso em que a realidade superou a ficção.