A incrível e fantástica estória de um povoado e o cheiro de cravos-de-defunto murchos
Era o Povoado o lugar que Aleph escolhera para presentear os corações e mentes aldeãs com a sabedoria e o voo das borboletas de sua poesia.
Assustado, o Povoado pareceu-lhe, ao primeiro olhar, algo totalmente diferente do que imaginara: o Paço do Burgomestre Municipal escondia-se na Neblina. Não havia sequer uma fresta de luz para mostrar que ali existia, de fato, um Palácio, muito menos, de que ali houvesse ou estivesse trabalhando o Interventor.
A aldeia exalava o cheiro de cravos-de-defunto murchos que invadia os botequins, os quartéis, as morgues e as alcovas, as sinagogas, os ilês e os templos. A fetidez nauseava o bêbado, justificava os “jetons” dos edis, corroia o moral da polícia, transfigurava as madrugadas, estimulava o Soberbo Burgomestre, provocava os meliantes, excitava os amantes, e, apesar de tudo, abundam óbolos nas burras da Viúva Municipal.
No comitê, os prosélitos, no ad aeternum beija-mão, juravam fidelidade ao Soberbo Burgomestre e revelavam o presságio que os Espectros enviaram-lhes das profundezas das lagoas: os lençóis freáticos, algum dia, iriam inunda o povoado.
Os Penitentes, então, jejuaram e rogaram perdão. Mal ressurgiu a primeira estrela, reincidiram.
Na Avenida Principal – reduto de ciganos, camelôs, rapinas e contraventores, Sem Ninha – o Ilusionista Vendedor de Milagres – era o único que não sentia o bodum, imunizado pelos antídotos ingeridos contra picada das serpentes, com as quais se exibia perante o populacho em troca de alguns tostões, não sem antes, à socapa, neutralizar o veneno das peçonhentas.
No Valão, nas ruas e avenidas predominava a água estagnada, o passeio derruído, os dejetos e as fezes dos cães, o matagal invasor. No terminal rodoviário, um indigente epiléptico estertorava há mais de duas horas, ante o olhar incrédulo do povedo, em face do descaso dos serviços de saúde e de assistência social.
No Paço, Athena, a Deusa das Artes e da Cultura, estirada em seu leito, anunciava ao Burgomestre, em uivos lancinantes, sua Morte para dali a poucas semanas, pois aquele bafio, quando invadia o Povoado, era para buscar alguém para o âmago das águas das Lagoas. Ela rogava ao Burgomestre para que a salvasse, valorizando-a perante aquele inculto populacho, antes que a Traiçoeira chegasse e a arrastasse para as águas que a conservariam refém até o dia de sua definitiva prestação de contas. O Burgomestre, fingidamente condescendente, sussurrava-lhe que nada de maléfico iria lhe acontecer, e aquele farfalhar de asas que a Atehna jurava ouvir eram as Asas da Anunciação, garantia de que tudo teria um final feliz. Em verdade, era Sem Ninha que arrastava as tralhas para os fundos da Igreja ao som longínquo de um gramofone, de onde regurgitava um tango antigo, ouvido até no lupanar, nos cafundós do Povoado. No prostíbulo, o Anjo Loiro despejava as sobras d’água de uma imensa bacia. Água que, naquele momento, inundava os barracos das favelas, despertava definitivamente o bêbado e lavava a alma dos Sectários. Água que arrefecia o fedor dos cravos-de-defunto murchos e misturava-se às dunas e às pedras dos tristes caminhos da Aldeia. Água com a qual Sem Ninha saciava sua sede e que o Burgomestre estendia, naquele momento, para o vazio.
Sem Ninha vaga pelas ruas desertas. Athena, ante a leniência do Burgomestre repousa eternamente nas profundezas das Lagoas. E Aleph não presenteou os corações e mentes com a sabedoria e o voo das borboletas de sua poesia.
O populacho ou era extremamente egoísta ou ignorante demais!
Fecho o livro que acabara de ler. A madrugada segue avançada. Alço o olhar para a lâmpada acesa onde uma mariposa teima em penetrar, e penso: onde foi mesmo que já ouvi esta estória?