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Ai de ti, Capão da Canoa/Xangri-Lá

Moro no Litoral há sete anos, tempo que não me passou em brancas nuvens. Com as raras cabeças pensantes – algumas, até então, vistas como “estrangeiras”, como eu, outras filhas da terra – criamos, parafraseando o Ministro britânico Winston Churchill, com “muito sangue, suor e lágrimas” o Conselho Municipal de Cultura e a Feira do Livro de Capão da Canoa.

Apoiado em “Teresinha”, de Chico Buarque de Holanda, uma construção poético-musical que vasculha a fundo a psique, estabelecendo relações surpreendentes entre comportamentos amorosos e tipos do inconsciente, ousei traçar um paralelo entre estas cidades – Capão da Canoa/Xangri-Lá e os que nelas nasceram, se arrancharam, se estabeleceram e as exploram – e “Teresinha”, a personagem buarquiana.

O poema é a mesma frase musical associada ao primeiro verso de uma conhecida cantiga popular, verso este que diz: “Teresinha de Jesus…”. Em paralelo, no poema de Buarque, a personagem “Teresinha(Capão da Canoa/Xangri-Lá)”, nominada apenas no título da obra, será visitada, em momentos especiais de sua vida, por três homens, os quais, na discussão de fundo embalada pela cantiga, são, deveras, três tipos psicológicos, cujas designações esclarecedoras aparecem na letra folclórica: pai, irmão e “aquele”, o inominado.

O primeiro dos homens que acorrem à “Teresinha(Capão da Canoa/Xangri-Lá)” de Buarque lhe chega “como quem vem do florista”, levando um “bicho de pelúcia” e “um broche de ametista”; mostra à personagem o seu relógio, a chama de “rainha”, conta-lhe vantagens e viagens.

Entanto esse homem tinha um defeito aos olhos da personagem: “[…] mas não me negava nada / E, assustada, eu disse não”. Trata-se de um provedor, alguém capaz de comover “Teresinha(Capão da Canoa/Xangri-Lá)”, quando a encontra “desarmada”. No entanto, algo na sua postura lhe é embaraçoso; ele não precisa dela, tanto assim que nada pede, apenas provê: eis o pai.

O segundo homem que acorre à “Teresinha(Capão da Canoa/Xangri-Lá)” de Chico “lhe chega como quem vem de um bar; traz um litro de aguardente, cheira a sua comida, a chama de “perdida”. Este é indiscreto ao inquirir do seu passado; mexe nas suas coisas, seus pertences, suas gavetas e, quando ela lhe pede que devolva o que apanhou, “não lhe entregava nada”. Tal figura, extremamente interessante, de um ponto de vista teórico psicológico, um implicante, um tipo cafajeste, é congruente, na discussão de fundo, que sobrepõe o poema à cantiga.  Por esta via, o autor estabelece um paralelo entre o comportamento fraterno e o de amantes que vivem em conflitos ásperos, de uma espécie que aparenta conferir fascínio libidinoso a ambas as partes. Trata-se de relações lúdicas, com um componente de sadomasoquismo, possivelmente intercalado por momentos de ternura, sendo que em toda essa estrutura e seus contrastes, se assenta uma segurança emocional difícil de compreender à primeira vista.

O terceiro homem que acorre à “Teresinha(Capão da Canoa/Xangri-Lá)” buarqueana é designado na cantiga apenas como “aquele”, ou seja: um estranho em sua vida, em sua mente inconsciente, não encontrando eco nos tipos construídos durante a infância, mas capaz de afetá-la, primariamente, em seu “id”, despertando, assim, a mulher, a fêmea, não mais a filha, a irmã, ou sequer a construção ególatra/superególatra em que a personagem tende a basear sua noção de identidade. Este último tipo, o inominado, é o que se deita em sua cama e a chama de “mulher”; ela, por seu turno, de modo aparentemente paradoxal, alega, “Nem sei como ele se chama / Mas entendo o que ele quer”. Seu nome lhe é vedado porque este tipo não é um membro da família, a ele não se vinculando nem um sobrenome familiar a ela, nem, tampouco, um nome estereotípico, uma definição fulcrada em injunções ególatras e culturais. O que move o inominado em direção a “Teresinha(Capão da Canoa/Xangri-Lá)” é, sobretudo, a sua condição ídica, a sua energia psíquica pura, e isto desperta nela reações da mesma espécie, anteriores à possibilidade do discurso e às amarrações psicológicas que este encerra: “E antes que eu dissesse não / Se instalou como um posseiro / Dentro do meu coração”.

O inominado é aquele que rouba beijos, carícias; é aquele que, fundamentalmente, surpreende a mulher; que vai se “chegando sorrateiro” e se impõe como algo imprevisto, mas que é simples, faz sentido e se torna bem-vindo por razões anteriores a qualquer tentativa de explicação redutiva. Este último tipo, portanto, na discussão de fundo, e no discurso paralelo da cantiga, é “[…] aquele / A quem “Teresinha(Capão da Canoa/Xangri-Lá)”.

Deixo a você, meu generoso leitor, a tarefa de dizer, agora, quem é quem!

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