Boato da cruz leva usuários da CG 150 às oficinas

Uma peça plástica cujo formato lembra uma cruz invertida assusta supersticiosos donos das motocicletas Honda CG 150 Titan. Uma onda de boatos na internet se espalha por todo o País e sugere que a cruz, instalada no farol, é amaldiçoada, resultado de um pacto feito com o diabo pelo engenheiro projetista do veículo. Muitos proprietários estão retirando a peça, o que pode causar dano à moto.”Em 35 anos de Brasil nunca vimos um absurdo tão grande”, diz um porta-voz da Honda. A empresa, porém, não descarta a possibilidade de alterar o desenho da peça para evitar problemas. A boataria na internet, fenômeno chamado de hoax, começou há um mês.

Em São Paulo, até o dono de uma grande loja de motos na região central retirou a peça, mas pede para não ser identificado.

Segundo relato que circula na internet, um engenheiro da Honda fez pacto com o demônio para que a moto fosse sucesso de vendas. Em troca, desenhou a cruz de cabeça para baixo que fica no farol e prejudica os usuários. Após se recusar a atender pedidos dessa força maligna, ele ficou doente e pede às pessoas para retirarem as cruzes para salvar sua vida.Em Cataguases (MG), cidade com 70 mil habitantes a 300 quilômetros de Belo Horizonte, a cruz amaldiçoada, junto com a Copa, é tema favorito em bares e rodas de amigos. O dono da única revenda Honda local, a Moto Bela, Luiz Cláudio Boechat, dedica parte de seu tempo a dar explicações a clientes e pessoas que o param na rua.

“Vários donos de motos vão à loja e pedem para tirar a peça. Recomendo que não tirem, mas, se insistem, fazemos o serviço por R$ 5 e avisamos da perda de garantia de serviços na parte elétrica”, diz Boechat.

Muitos motociclistas fazem o serviço por conta própria. “A maldição para mim acabou”, informa o comerciante Sebastião Lúcio de Moraes. Dono de um açougue, adquiriu a CG 150 no ano passado e conta que, recentemente, escapou de dois acidentes. Em um deles, “quase entrei de frente em uma carreta.”

Moraes soube do fenômeno por um amigo que também retirou a cruz “e ficou todo arrepiado”. Com 41 anos, ele sempre teve moto e só não vende a atual porque foi adquirida pelo financiamento e há várias prestações a serem pagas.

Segundo Boechat, por enquanto não houve prejuízo nos negócios. A loja vende em média 140 motos ao mês. A concorrente Sun Motors, revenda Sundown, informa que seus negócios aumentaram. “Pode ser bobagem, mas sempre há gente que não quer correr o risco”, diz o vendedor Jeferson Xavier.

A Honda recebe inúmeros e-mails de clientes, alguns com críticas pelo fato de a empresa ter recorrido a pactos demoníacos. Não bastasse a cruz, o nome do pneu da moto – City Demon, da Pirelli -, está sendo traduzido como Cidade Demônio.

Por considerar o boato “absurdo e descabido”, a Honda limitou-se a divulgar nota informando que a peça, chamada de Clamp H 25 tem a função de proteger e posicionar adequadamente a fiação principal localizada na parte interna do sistema de iluminação do farol, a fim de evitar rompimento dos fios ou mau contato. A retirada dificulta a manutenção do farol e a vida útil da fiação é reduzida. Em maio, as vendas da CG 150 atingiram 38,5 mil unidades, o melhor resultado mensal do ano.

Fonte: Estado

De acordo com os sites especializados em motocicletas MotoOnline e JacaréMotos, a peça (chamada Clamp H 25, ou “Gabarito”) serve para dar suporte a um feixe de fios elétricos conhecido por “chicote”. Sem esta peça, os fios podem se romper com a ação do tempo e dos movimentos da moto, danificando a parte elétrica. Sua retirada causa perda da garantia.

Opinião do site http://www.duvido.com/:

Bem. Lá vamos nós.

De todos os boatos sem fundamento, os boatos de pactos demoníacos são os mais folclóricos, absurdos e ridículos. Apesar disso, persistentes. Embora apresentem uma originalidade sem par na escolha das “vítimas”, geralmente a trama subsequente segue os mesmos e batidos passos: alguém importante faz um pacto com o personagem vilão da mitologia cristã, inunda o mercado com um produto onde há um componente maligno “oculto” (geralmente algum detalhe que existe mesmo, descoberto por acaso pelo autor do boato e utilizado como base para o trote), alguns relatos anedóticos são incluídos para ilustrar a história (o famoso “primo de um amigo” que se acidentou, ou o parente de alguma celebridade que morreu) e é fornecida a “receita” de como se livrar da “maldição”, quase sempre, por meio de algum procedimento que irá causar ao crédulo algum prejuízo (como a retirada de uma peça que anula a garantia do produto, ou o apagar de um arquivo essencial do computador, ou a irremediável destruição do produto para encontrar os tais componentes ocultos).

Desnecessário dizer, o trote sempre encontra vítimas. Por mais absurda que possa ser a idéia de um personagem da mitologia cristã influenciar o mundo real, sempre há uma parcela da população cultivando a chama do misticismo neolítico. Por uma condição patológica bastante comum em nosso país (o desligamento da realidade objetiva causado pelo condicionamento religioso), a mentalidade dos intelectualmente excluídos, análoga à pré-histórica no que tange à incapacidade de separar o mágico do real, é um terreno fértil para o cultivo de toda sorte de enganações.

Mas vamos ao trote propriamente dito. O site fundamentalista-fanático “Tabernaculo.net”, famoso pelo comportamento histérico e alarmista, ajuda a pintar com tons apocalípticos uma estorieta bastante infantil que, faz questão de ressaltar, recebeu “via orkut e e-mail” (como sabemos, duas fontes que podem ser tudo, menos confiáveis). A história, que conta as desventuras de um suposto engenheiro da Honda às voltas com “exus”, é bastante típica:

Desde menino sempre tive dons para desenvolver projetos mecatronicos, resolvi estudar e me aprofundar no assunto, morava no Brasil e resolvi estudar no Japão pois tinha dupla nacionalide aos 30 anos me formei na universidade Goyake kadani em Tókio, aos 33 anos fui contratado como engenheiro da Honda Motors S/A do Japão para auxiliar no desenvolvimento e projetos de novas motos, passei por vários cargos, fui chefe de linha de produção por 5 anos, depois fui promovido para o setor interno até chegar o inicio da minha triste história, recebi uma ordem dos meus superiores para desenvolver e fabricar uma nova motocicleta, com 150 cilindradas para ser fornecida principalmente para o Brasil, e Argentina, com muito medo de ser um fracasso assim como a AERO 150 mas lancei o modelo, infelizmente não obtivemos no inicio as vendas que esperávamos e as motos começaram a dar problemas e gerar processos para a Honda, em dezembro de 2004 tive um sonho que aparecia uma santa dizendo para eu procurar um centro espírita pois ela tinha uma mensagem importante para me dizer, sem acreditar muito nessas coisas pois eu sempre fui budista, eu fui a um centro, foi muito difícil encontrar um mas consegui, chegando lá falei de todos os meus problemas, e fui atendido em uma sexta-feira a meia noite, recebi uma proposta de mudança de vida, de dois exus, e aceitei mesmo sem acreditar muito nisso, fiz um pacto de sangue, onde são cortados os dois dedos mínimos e oferecidos com sangue de animais sagrados para os exus, eu também tive que tomar e fizeram em minha testa uma cruz de ponta cabeça com sangue, todo o ritual foi assistido por imagens e pessoas que faziam parte daquela comunidade espírita, a partir daí minha vida começou a mudar minha família meu trabalho estava tudo bem, antes da virada do ano ainda em 2004 recebi uma visita dos exus, eles pediam algo em troca por tudo o que ele haviam me dado inclusive o sucesso e a fama da moto, eles pediram a mim que antes do inicio da fabricação das TITANS 2005 eu deveria fazer uma peça cujo o desenho eles iriam me mostrar e se eu Aceitasse as motos iria vender cada vez mais e mais, com muita ganância eu aceitei sem ver o desenho da peça, pois eu já confiava neles, então me mostraram uma cruz no calvário e pediram para eu fizesse esta peça o mais parecido com a imagem que eu havia visto e que eu colocasse a cruz de ponta cabeça em algum lugar da moto, escondido mas tinha que ser uma peça que não tivesse serventia para nada, como as vendas estavam indo muito bem, eu não queria parar pois tinha um contrato com o Brasil de 10 milhões de unidades e a Honda não podia falhar, fiz a peça e obtive os resultados esperados até mais, os diretores e encarregados de marketing tiveram os seus ordenados aumentados e tudo corria bem, quando em 2006 no mês de março recebi mais uma visita dos exus pedindo mais sacrifícios, ao ver o que eles queriam percebi q desta vez era impossível, pediam para que eu sacrificasse meu próprio filho em um ritual macabro, eu não aceitei!

Pois eu o amava muito, Aí então começou toda a desgraça! Me separei da minha esposa, meu filho foi assassinado em um assalto e os meus pais afundaram em um barco na praia, fiquei sozinho, percebi então que era somente o começo, ao ficar doente procurei um hospital e percebi que estava com inúmeras doenças uma delas, o câncer, hoje estou em uma cama não movimento meus membros da cintura para baixo, estou tentando fazer este apelo e pedir para todos os donos das motos tirar as cruzes e destruírem! não sei se vou conseguir mas segundo uma evangélica que me visitou disse ela que se todas as cruzes forem destruídas eu posso sobreviver ainda, conto com todos os proprietários das sei que eh quase impossível mas ajudem a divulgar isso, pelo mundo, obrigado!

Aqui está o pitoresco “testemunho” do “engenheiro”. Bastante familiar, diga-se de passagem, uma vez que estamos fartos de ouvir estorietas semelhantes na programação de madrugada da Record (“eu era um homem de sucesso, me envolvi com religiões afro-brasileiras, fiz pactos com ‘encostos’ e destruí minha vida até que passei a frequentar o Congresso Empresarial da Igreja Universal”, e outras variações sobre o mesmo tema).

A primeira coisa a ser notada é que nosso engenheiro, embora não tenha muita familiaridade com a língua portuguesa (escreve de um fôlego só, amontoando frases sem se preocupar com a pontuação, o que indica baixa escolaridade), parece bem à vontade com os cacoetes dos adolescentes em chat e orkut: “eh” ao invés de “é”, “q” ao invés de “que” e tudo o mais.

Depois, nosso desafortunado engenheiro não assina o e-mail. Ora, se eu estivesse desesperado, à beira da morte em um leito de hospital com a vida dependendo do sucesso de um pedido feito por e-mail, trataria de torná-lo o mais plausível possível, dando o máximo de evidências que existo mesmo. No entanto, nosso ingênuo amigo preferiu veicular se pedido desesperado de socorro de maneira anônima, o que é fatal para a credibilidade do pedido.

Nosso rico enfermo também não procurou os jornais, revistas ou qualquer outro meio de publicação mais séria, em vez disso preferiu… o orkut, onde sua história seria apenas mais uma dentre o mar de histórias implausíveis que qualquer um pode repassar anonimamente no site de relacionamentos.

Continuando. A próxima característica que salta aos olhos é a mistificação, demonização e difamação de religiões afro-brasileiras, por meio de descrições de rituais e práticas que pouco ou nada têm a ver com a realidade. Isso nos traz alguns indícios fortes sobre qual a opção religiosa do autor, e que, além do trote, obviamente têm como objetivo, já que está anônimo mesmo, “tirar uma casquinha” da religião dos outros. Ele já começa, disfarçadamente, fazendo uma alusão ao catolicismo e à santa Maria, personagem cultuada neste ramo do cristianismo, e cuja adoração, para os evangélicos, é tida como heresia (“em dezembro de 2004 tive um sonho que aparecia uma santa”).

Em seguida, parte para os ataques às religiões afro, colocando-as no mesmo saco, por ignorância ou má-fé, que o espiritismo:

(…) dizendo para eu procurar um centro espírita pois ela tinha uma mensagem importante para me dizer (…) (…) recebi uma proposta de mudança de vida, de dois exus (…) (…) todo o ritual foi assistido por imagens e pessoas que faziam parte daquela comunidade espírita (…)
No final, claro, a esperança não poderia vir de outra pessoa senão, adivinhem só, de uma adepta da “religião certa”:

(…) segundo uma evangélica que me visitou disse ela que se todas as cruzes forem destruídas eu posso sobreviver ainda (…)
Já vemos onde o autor do “relato” quer chegar: difamação da religião alheia. Claro, o site “Tabernáculo.net” não perdeu a oportunidade: não verificou fonte, não levou em conta o absurdo da estória, não avaliou a histeria que poderia criar chancelando um absurdo deste tamanho. Como pimenta na opção religiosa dos outros é refresco, preferiu presumir a estória toda como verdadeira e espalhar irresponsavelmente o boato em diante.

Voltando ao assunto. Para aumentar o clima de terror da história, o tal do engenheiro cita várias abobrinhas. Foi atendido na sexta-feira à meia-noite, cortou os dedos, fez sacrifícios de animais, desenhou cruzes invertidas na testa com o próprio sangue… para ficar mais folclórico, faltou dizer que o ritual aconteceu no castelo do Conde Drácula e que o Monstro de Frankestein estava servindo empadinhas. Ou que havia um grupo de garotos jogando Dungeons & Dragons no local, o que para certos fundamentalistas seria ainda mais macabro e cataclísmico. De qualquer forma, qualquer um que tenha passado a dois quilômetros de um centro espírita na vida sabe muito bem que estes rituais são lendas.
Claro, nosso intrépido engenheiro, “sem acreditar muito nessas coisas”, também não pensou duas vezes antes de participar de “um pacto de sangue, onde são cortados os dois dedos mínimos” da forma mais blasée possível. Afinal, ninguém parece usar estes dedos mesmo, pelo menos não depois que inventaram os cotonetes.

Nosso faustiano projetista segue o relato. Ignorando o fato de que motos, carros, aviões ou barbeadores não são projetados por uma pessoa, mas sim por enormes equipes de engenheiros (não podemos cobrar este tipo de conhecimento do pobre homem, já que nossos anônimo amigo ficou “apenas” cinco anos à frente da linha de montagem antes de ser transferido para o… aham, o misterioso “o setor interno”), nosso amigo informa que os dois encostos, digo, exús, começaram a assediá-lo com pedidos cada vez mais forçados para dar “fama e fortuna” (os dedos cortados foram só para aquecer). Quando ele resolveu negar, toda sorte de desgraça aconteceu com ele:

Aí então começou toda a desgraça! Me separei da minha esposa, meu filho foi assassinado em um assalto e os meus pais afundaram em um barco na praia, fiquei sozinho, percebi então que era somente o começo, ao ficar doente procurei um hospital e percebi que estava com inúmeras doenças uma delas, o câncer, hoje estou em uma cama não movimento meus membros da cintura para baixo (…)
Para facilitar a vida de nós, seus salvadores, nosso nipônico amigo poderia indicar pelo menos um nome, um local, ou um link para uma notícia que fizesse menção a estes nefastos desastres. Mas não, ao invés disso, nosso quase-finado suplicante lança seu desesperado pedido da forma mais anônima e displicente possível. Ora, deveria saber que sem uma mínima fumaça de veracidade o orgulhoso dono de uma moto Honda Titan 150 não iria sair metendo a tesoura na garantia de fábrica a troco de nada.

No entanto, o golpe final na estória é o fato de que as datas envolvidas no relato são mentirosas. Não seria de estranhar se o tal projetista ao se lembrar de eventos de um passado nebuloso, se equivocasse, no entanto, em várias ocasiões ele afirma que os eventos ocorreram em final de 2004, há apenas um ano e meio. Segundo o autor do “relato”, o pacto para a inclusão de tal peça no projeto da moto ocorreu “pouco antes da virada do ano, ainda em 2004?. No entanto, antes mesmo disso a peça já existia na moto. Vários usuários encontraram o protetor da fiação instalado em motos adquiridas em 2004 – o que significa, já que as motos não saem direto da linha de montagem para as revendas, que ele já estava presente nas motos fabricadas, possivelmente, mesmo bem antes disso, de acordo com projetos elaborados em data ainda anterior.

Claro, para os fundamentalistas apocalípticos, isso é um detalhe mínimo. Insignificante. Ora, o que é a coerência, quando o que importa é espalhar pânico e histeria entre o rebanho? O próprio “Tabernáculo.net” releva este “pequeno” detalhe:

Nota 1: Não existe garantia da veracidade deste e-mail. Estou divulgando para saberem o que está percorrendo a Internet. O fato das cruzes serem inseridas a partir de 2005 com certeza não é verdade, pois temos vários relatos de pessoas que encontraram também em motos de 2004, mas isso não compromete o todo.
Resumindo: me sinto indigno ao dedicar tanto espaço a uma baboseira tão absurda. Mas, ao que tudo indica, contra todos os prognósticos, existe gente que acredita nesta abobrinha de verdade. E muita gente. Sim, nós mesmos, a raça humana, possuímos membros que acreditamos em coisas deste tipo. Nós, que colocamos os pés na Lua, que quebramos o átomo, que desvendamos os segredos do DNA e que tivemos representantes como Sócrates e Galileu, ainda possuímos integrantes tão animalescos que acreditam que um personagem da mitologia de tribos neolíticas da Palestina existe de verdade – e que, ao invés de cumprir seus objetivos nefastos influenciando gente importante a lançar todo o arsenal atômico do quintal na cabeça do vizinho, prefere destruir a humanidade colocando penduricalhos de plástico na fiação elétrica de uma moto.

Humanos. Se perguntarem, eu não conheço.

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