Capítulo XXIII de “Navegar É Preciso...” - Sergio Agra - Litoralmania ®
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Capítulo XXIII de “Navegar É Preciso…” – Sergio Agra

UMA REVELAÇÃO NO SOBRADO AMARELO

 Capítulo XXIII de “Navegar É Preciso…”

“O coração, se pudesse pensar, pararia.”

Fernando Pessoa

Nos últimos vinte anos o bairro do sobrado amarelo da família do general M.B. pouco mudara. Curiosamente as incorporações e o mercado imobiliário ignoraram aquela região. A única e visível transformação fora a extinção e a retirada de circulação dos bondes, o que se dera também em todos os bairros servidos pelos simpáticos elétricos na cor amarela cingida por uma faixa horizontal em vermelho. Não me fora pois difícil encontrar a casa.

A serviçal conduziu-me até uma saleta amplamente iluminada. Ali se encontrava Dona Alice, empenhada na feitura de uma manta em crochê. Surpreendida com minha chegada custou a me reconhecer, — “Afinal — desculpou-se a idosa —, faz exatos vinte anos da tarde em que você esteve aqui para me dar notícia da decisão de Maria do Carmo”. Embaraçado, desculpei-me, — “Ainda sinto muito ter sido o portador da incumbência”. O sorriso triste de Dona Alice era o mesmo estampado por Maria do Carmo no retrato em frente à Torre de Belém. Com suavidade Dona Alice contemporizou, “Não! Não se culpe por isso! Afinal, você foi muito corajoso em se empenhar numa aventura em que ela há muito já estava empenhada! — agora a anciã sorria com leveza — E acredito que já deva saber vocês me deram o maior presente para o restante de meus dias…”. — “Isso quer dizer…”, Dona Alice deixara em definitivo o crochê sobre a mesinha auxiliar, — “Sim, Arthur é seu filho!”. Embora eu já houvesse suposto, ao abrir o envelope e vislumbrado a foto, de que o garoto ao lado de Maria do Carmo pudesse ser nosso filho a revelação teve um efeito bombástico. Após alguns minutos em silência eu quis saber, — “E Maria do Carmo, como ela está?”. As feições de Dona Alice denotaram a imensa dor que suas palavras carregavam, — “Minha filhas não está mais entre nós… Partiu há dois anos…”. Faltou-me o chão. Apoie-me desajeitamente em um dos braços da poltrona para não me estatelar. Impossível descrever sequer o mais breve dos sentimentos que invadiram meu espírito: a dor, a culpa, a omissão, a alienação, o egoísmo, tudo se mesclou. A única justificativa foi a de dizer que estivera longe do Brasil e que somente há pouco havia retornado. O impacto que as palavras de Dona Alice me causaram fora infinitamente maior do que a confirmação de que Maria do Carmo carregara consigo e sozinha por todo o tempo um filho que também era meu. Atônito, foi o que me veio à mente, — “Eu me atrasei…”.

— “Apena dezoito anos!”.

De sob o batente, de onde viera a voz, econtrava-se um belo jovem, meu reflexo aos dezoito anos.

Arthur!

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