Nunca pude entender a conversação que tive com Clarissa, há alguns meses, no ocaso de uma fria tarde de quinta-feira, à mesa do Café do Porto. Tenho a certeza absoluta de que fora menos pela minha maneira circunspeta amargurada e melancólica que o celibato poderia ensejar do que o estranho rumo que aquele colóquio tomou.

Tornei-me este homem ainda mais macambúzio após minha aposentação compulsória. Não pela idade; por fatos políticos que levaram um governante, comprometido com o grande capital, a liquidar a autarquia onde trabalhava como assessor jurídico. Semelhante estado de humor, no entanto, longe estava de oferecer-se a uma demência.

Contava nove anos quando minha família mudou-se para a rua José do Patrocínio. Fora alguns poucos colegas de classe do Grupo Escolar, não possuía amigos ou companheiros para as brincadeiras de bola no campinho da rua Avaí. Assim, foi com desconfiança que a vi passar pela terceira vez à minha frente. Deveria ter quase a minha idade.

Era linda, loira, cabelos em cachos escapulindo do gorro de lã que fazia conjunto com o suéter. Usava saia plissada e meias colegiais até os joelhos. O mais conhecido dos agregados de Machado de Assis se ali estivesse certamente me diria ao pé do ouvido: “Veja, ela tem olhos de cigana oblíqua e dissimulada”.

A cor era de um verde como as profundezas das águas do mar, e de uma força que arrastava para dentro. Ela abandonou a bicicleta na grama e andou devagar, jogando um pouco os pés, como se quisesse brincar com a bola. Perguntou se podia sentar ali. Fiz um gesto afirmativo com a cabeça. Ela pôs-se em posição de lótus e perguntou-me onde morava. Fui lacônico. Ela, ao contrário, expansiva me informou:

– Moro na mesma rua, no sobrado amarelo. Mudamos ontem. Papai formou-se advogado e vai trabalhar na Assembléia.

– Sei qual é, – respondi-lhe –  ali houve um crime!

– Crime??? – os olhos verdes pareciam ondas avassaladoras.

– Foi horrível, bárbaro! Uma tragédia! – Senti prazer em assustá-la.

– Me conta.

– Outro dia, não quero que tenhas pesadelos – fingi escrúpulos.

– Não sou a garotinha medrosa que deves estar imaginando! – rechaçou com desdém.

Narrei-lhe, então, a tragédia dos irmãos Iago e Desdêmona. O menino encontrara o revólver do pai. Chamou pela irmã. Entregando-lhe a arma, disse que fizesse de conta que ele era o inimigo. Desdêmona disparou. O projétil atingiu o pequeno Otelo que dormia no bercinho.
Mantivemo-nos em silêncio por um longo tempo após o relato. A garota ergueu-se e apanhou novamente a bicicleta. Sorriu vitoriosa:

– Percebeste? Não fiquei nem arrepiada com a história! – Pedalando arrematou – Aparece lá em casa, papai encomendou um dos primeiros aparelhos de televisão que estão surgindo, venha ver.

– Hei, nem sei o teu nome…

– Clarissa… – E se foi, sem se aperceber que deixara no campinho um garoto de dez anos que se indagava de que fontes viriam a força daqueles olhos verdes.

Passei a visitar com freqüência o sobrado amarelo da família P. O casal possuía duas filhas. Clarissa e Camila, a mais nova. Doutor Rubens era uma figura cativante, sempre em paz com a vida. Tinha um andar que resumia todo o seu modo de ser: álacre e saltitante. Dona Cassandra, taciturna e fumante compulsiva, ansiava em adivinhar por entre as espirais de fumaça do seu cigarro os passos noctívagos do marido. Refestelados no sofá, Clarissa e eu assistíamos, embevecidos, a última das novidades: a televisão.

Certa noite, Doutor Rubens e Dona Cassandra tiveram de comparecer a um ato solene na Assembléia Legislativa. Ficamos sob a vigilância de Dona Dindinha, uma negra velha, já incorporada ao patrimônio da família P. Dona Dindinha dormitava sobre o mocho que trouxera da cozinha. A TV causava-lhe canseira nas vista, ela dizia. As pálpebras pesavam-lhe e, não demorava muito, a velha ressonava sobre o ínfimo assento.

Em dado momento, e com aparente naturalidade, Clarissa pousou a sua mão sobre a minha. Tomado de susto, quedei-me como uma estátua.

Eu transpirava. Clarissa permanecia imperturbável, com os olhos fixos no aparelho de televisão. Dona Dindinha entregara-se em definitivo ao prazeroso cochilo. Na telinha, o apresentador anunciava o “VARIG em Noite de Gala”. Aos poucos, adquiri uma audácia até então desconhecida. Minhas mãos trementes percorriam as paragens virginais de Clarissa.

Os anos seguintes marcaram de forma indelével para o resto de nossas vidas. The Beatles e Rolling Stones disputavam nossas cabeças. As reuniões-dançantes eram regadas a cuba-libre. Fumava-se Minister, mascava-se Ping-Pong. Clarissa idolatrava James Dean e Rock Hudson. As fotos dos atores enfeitavam o seu arquivo escolar. Nos cadernos de questionários das amigas – dissimulada! – respondia não, nunca fora beijada! Eu tinha ímpetos de desmascará-la, escrevendo em letras garrafais “não é verdade!!!”. Ela desmentiria, facilmente, levando-me a fazer papel de tolo.

Não valeria a pena. Clarissa arrasava nos bailes da Reitoria. Dizia ir para a casa de alguma colega estudar para as provas e, na verdade, escapulia para as suspeitosas reuniões-dançantes do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina, nas imediações do velho necrotério. O primeiro cigarro de maconha me fora trazido por Clarissa. Tontura, vômitos, não repeti a experiência.

A constatação de minha perda definitiva de Clarissa: a vi na garupa da Lambretta de algum acadêmico, imaginando-se – assim eu presumia – estar a bordo de um Mustang cor de sangue.
Aconteceu, naquela época, mudarmo-nos de bairro. Não mais a vi. Apenas soube, alguns anos mais tarde, que o bólido sonhado surgiu-lhe, dirigido pelas mãos hábeis de Manlio A. Clarissa conheceu-lhe a conta bancária. Casaram-se.

Transitava tal sonâmbulo entre as quinquilharias falsificadas dos camelôs no Calçadão. Estava mal, deprimido. A aposentadoria precoce não fora, em realidade, a premiação pelos anos de trabalho. Dava-me a sensação de inutilidade. Decidira-me por me estabelecer com escritório de advocacia.

Buscava, pois, a locação de uma sala ideal. Foi em meio a este estado onírico que senti me segurarem o braço e chamarem-me pelo nome: “A.!”. Era Doutor Rubens P., o mesmo Doutor Rubens, gárrulo, no seu caminhar álacre e saltitante, sempre de bem com a vida. Convidou-me para conhecer seu escritório na rua Riachuelo, com vistas para o Theatro. Os móveis e a decoração, curiosamente, emprestavam ao ambiente ar de uma garçonnière. Perguntou-me o por quê do meu descaminho. Disse-lhe que sempre amara Clarissa, e o suplício de sabê-la de outro me era insuportável.

Contou-me que a filha estava divorciada e só. Às quintas-feiras, no final da tarde, encontrava-se com um grupo de amigas no Café do Porto. Despedimo-nos, comovidos, não sem antes Doutor Rubens me fazer o convite de trabalharmos juntos e prometer-lhe que eu iria ao encontro de Clarissa.

Clarissa entrou na cafeteria. Os olhos – de cigana oblíqua e dissimulada, verdes como as profundezas das águas do mar – buscavam algum ponto determinado do salão. Ao deparar-me, demonstrou a mais genuína surpresa. Não! Eu diria mais do que apenas surpresa. Assombro, espanto. Era isso o que expressava o semblante de Clarissa. Aproximando-se da minha mesa disse mais para si mesma:

– Creio que me atrasei.

– Apenas quarenta anos – respondi-lhe extático.

Ante a ausência de qualquer gesto de Clarissa, confessei-lhe o amor reprimido durante todo esse tempo e a gratidão que tinha por seu pai, Doutor Rubens, em me presentear com a informação daquele reencontro. Clarissa permanecia com a mesma expressão; acentuara-se, no entanto, a palidez da tez.

– Há vinte e cinco anos papai foi encontrado numa garçonnière, com um tiro na cabeça. Suicídio.

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