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Concerto Andaluz – Final

Andante con dolore – II

(Miguel desiste da chamada. Recoloca com violência o fone no descanso e dirige-se ao ponto de táxi. Embarca num Volkswagen caindo aos pedaços. O rádio do carro, o volume ligado no máximo, transmite uma milonga.Miguel, puto da vida): – Toca p’ra 24 de Outubro.

(O motorista dá uma estrepitosa fungada e cospe pela janela do carro): – Baita calor hoje, né patrício? Lembra um verão da minha infância. Patrício apresento-me. Sou o Blau do Alegrete. Escuite: eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezigue. Já senti a ardentia das areias…

Miguel sequer ouve o que o diz. Pensa em apenas ter notícias de Angélica Elisa, que não respondera a nenhum dos seus telefonemas e tampouco comparecera às aulas do cursinho nos últimos dez dias. O táxi chega ao edifício da professora e o alegretense ainda perorava.

(Blau, o taxista): – …subi aos extremos do Passo Fundo, deambulei para os cumes da Lagoa vermelha…

Ao cruzar os jardins do condomínio, Miguel percebe o porteiro Nêgo Boni. O empregado vem ao seu encontro, a mão direita estendida – no dedo anular reluz o anel barato, com uma pedra de diamante de raríssima beleza incrustada no centro (o que não faz nexo algum com a armação ordinária). Nêgo Boni parece querer dizer-lhe alguma coisa.

(Nêgo Boni, obsequioso, deixa transparecer no semblante a intenção de quem vai pedir a propina): – “Seo” Miguel…
(Miguel, evitando qualquer tentativa de diálogo): – Hoje, não, meu Nêgo, hoje, não! Vamos deixar p’routra hora.

No saguão do prédio, Miguel observa que apenas o elevador de serviço funciona; o social encontra-se em revisão. Embarca com a vizinha de porta de Angélica Elisa. A mulher, perto dos setenta anos, traja um conjunto de malha de ginástica verde-limão, com destaques em roxo, vermelho e amarelo. Ela o cumprimenta.

(Vizinha, sardônica): – Boa taaaaaaaarrrrrrrrrrdeeeee.

(Miguel tem desejos de esganar a velha): – Boa tarde.

(Vizinha): – Angélica não mora mais aqui no prédio, Nêgo Boni não lhe falou?

(Miguel, atônito, ante o inesperado da notícia): – O quê?… Desde quando?… Para onde ela foi, meu Deus?…

No sétimo andar o elevador estaciona. Miguel se adianta à senhora, segura a porta para que ela saia. A vizinha dirige-se ao seu apartamento.

(Vizinha, num tom mais formal, demonstra preocupação): – Já fez uma semana. Antes de partir, ela deixou um envelope endereçado a você. Pediu-me que o despachasse pelo Correios, só que não encontrei tempo para ir à cidade. (Abre a porta) – Aqui está. (Entrega um envelope azul, no qual Miguel reconhece a letra da amante). – Ela não pôde me dizer muita coisa, o Biscarra estava próximo, despachando as malas no elevador. Angélica estava muito abatida, usava óculos escuros. Percebi vergões em volta do seu pescoço; a echarpe não conseguiu disfarçar. Perguntei se estavam de mudanças ou era apenas uma viagem. Respondeu-me com evasivas. Acho que não fazia questão de dizer para onde iam. Depois, eu soube que era mudança, mesmo. E p’ra bem longe!

(Miguel, voz trêmula pela emoção, lê o bilhete em voz baixa): – “Quando você estiver lendo estas palavras, estarei distante de Porto Alegre, do Brasil, nem eu própria sei. A única certeza que agora tenho é a de que não mais nos veremos. Saio de tua vida para entrar definitivamente no Capítulo LXVIII que Hector decidir. A vida de meu marido é uma Segunda Parte incógnita; se lida com gente “barra pesada”. Creio que a ária que eu ouvia na noite de chegada repentina de Hector despertou-lhe o mais selvagem dos instintos: o ciúme, a desconfiança. Sem nada dizer, rasgou-me a túnica de seda e possuiu-me com a violência de um animal.

Estrangulou-me quase à asfixia, rompendo a gargantilha e despregando a pedra de diamante. No meio da trepada, disse coisas que me assustaram: “Vais sentir o fogo dos infernos, como arde a lambida desse fogo na pira do sacrifício”. Era um fogo amarelo azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagando… e quando um menos se espera, aparece outra vez, do mesmo jeito! Depois, pela primeira vez, penetrou-me o ânus.

Não sei o que mais doía: as veias do pescoço que suas manoplas comprimiam ou a dor física e moral do estupro. Não te canses, Periquilho, que nunca a hás de ver nos dias da tua vida. Hector ordena para que me apresse. Não tenho mais tempo. Faz uso de tua memória. Ela será fundamental Angélica Elisa.”

…não adiantariam nada todas as rezas e promessas que fizesse aos santos mesmo porque eles são uma legião um exército e assim seriam tantas as velas a serem acesas ou poria fogo nas igrejas e terreiras e sufocaria os fiéis carolas os cambonos e as imagens dos santos que há muito me encaram já não mais tão pétreos a ponto de verterem lágrimas de sangue o fato é que a lua ia recém-saindo…; e foi à boquinha da noite Angélica Elisa não atendera ao telefone tampouco lembrou nosso compromisso de jantar com o Enrique Vilas-Matas não sei como vou explicar ao escriba espanhol o inexplicável o injustificável o imperdoável o hombre viaja miles e miles de quilômetros para se deliciar com os bolinhos de batata e os filés dos pubs da rua Padre Chagas e fica dependurado no pincel por conta dos achaques temperamentais da cigana filha-da-puta a mãe que me perdoe não conheci a pobre da velha vou mesmo é partir p’ra outra a verdade é que Angélica Elisa me transportava para desconhecidas Galáxias em sua desvairada e cálida nave de amor que outra não viajarei e saberei igual Hector Biscarra hoje tenho certeza viaja como viajava aquele bêbedo do boteco nas cordas do violão sebento e nas lembranças imorredouras que a canção trazia embarco na carroça do taura do Alegrete, o tal de Blau, fungando a cada acelerada e cuspindo adoidado reclamando do calor não dou trela aí vem o Negro Bonifácio sorri à minha chegada o safado o que tinha de diferente aquele anel ordinário um diamante já vira a pedra quer me cobrar a propina o malandro conheço a artimanha o diamante naquele anel vagabundo do Negro Bonifácio não fazia sentido reparo na placa de revisão fixada na porta do elevador social subimos no de serviço a velha vizinha de porta de Angélica Elisa e eu vai ter azar assim na puta-que-o-pariu sempre que venho ou subo ou desço com essa velha me cumprimenta num boa taaaaarrrrdeeeee cínico debochado está ridícula com aquele trajo verde limão com roxo vermelho e amarelo não tenho como evitar era o único que funcionava a vizinha dizque Angélica Elisa não mora mais ali onde vira aquela pedra de diamante finjo gentilezas abro e seguro a porta para ela sair me diz que tem um bilhete de Angélica Elisa apanha o envelope no consolo do seu apartamento a letra inconfundível de Angélica Elisa a pedra o quê me faz lembrar seria necessário me jogar de cabeça nem que fosse na escuridão que vem do fundo do poço tonteio falta me o chão busco desesperadamente a saída ouço a bruaca dizer alguma coisa o que faz o diamante no dedo seboso de Negro Bonifácio só me falta a bruxa velha insinuar que além do bilhete estou levando algo de seu a Habanera Maria Callas Biscarra entendeu abro a porta do elevador social diamante agora sim ouço a velha gritar o pedido de socorro de Angélica Elisa “Capítulo LXVIII Segunda Parte Don Quixote de La Mancha claro transparente gélido como as águas de um lago andino “assim o viver me mata pois que a morte me torna a dar a vida condição nunca ouvida a quem comigo vida e morte trata” agora é taaaaaaaaaaaardeeeeeee…

(A vizinha corre, desesperada, em direção a Miguel): – Não! Esse, não! Pelo amor de Deus, é o elevador estragado!

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