Concerto Andaluz – II

Andante espressivo – II

A imagem de Angélica Elisa não saiu do pensamento de Miguel durante toda uma semana. Por isso,foi com ansiedade que ele buscou na pequena biblioteca do pai um antigo volume de “El Ingenioso Hidalgo Don Qvixote de La Mancha, compuesto por Miguel de Cervantes Saavedra”, que pertencera à sua avó. Encontrou, ao acaso, uma brochura editada em Buenos Aires com sonetos inéditos de Federico Garcia Lorca. Leu-os.

Angélica Elisa instruiu os alunos para que colocassem os seus trabalhos sobre a mesa. Em seguida, passou a dissertar sobre o capítulo “Que Trata da Primeira Saída que de sua Terra Fez o Engenhoso D. Quixote”.

Na aula seguinte, Angélica Elisa, após algumas considerações sobre o tema que havia sido proposto para os trabalhos, devolveu-os aos alunos, exceto o de Miguel. Findo o período, ela indagou quem era Miguel. Hesitante, ele ergueu o braço:

– Acompanhe-me à sala dos professores – ela determinou ao aluno…

Miguel transpirava. Desconhecia as conseqüências de sua ousadia. Não se sentia, no entanto, arrependido do que fizera. Estava pronto para o que desse e viesse.

A sala reservada aos professores encontrava-se vazia. Terminara o último período do turno da manhã. Professora e aluno estariam, assim, à vontade para conversar. Angélica Elisa ofereceu uma cadeira a Miguel e acomodou-se noutra, de frente para o rapaz. Sobre a mesa que os separava, depositou duas folhas de ofício. Ela foi direta ao assunto:

– O que significam estes poemas? – Não havia, na voz de Angélica Elisa, qualquer menção de reprimenda ou censura.

Numa das alvas folhas datilografadas liam-se os versos do soneto:

La Mujer Lejana
Soneto Sensual

“Todas las mil fragancias que manan de  tu boca  son perfumadas nubes que matan de dulzura…”

Na folha seguinte, um outro soneto:

Soneto de la Dulce Queja

“Tengo miedo a perder la maravilla
de tus ojos de estatua, y el acento…”

– São sonetos inéditos de Lorca – respondeu Miguel.

– Percebi. Porém, desconheço é a razão pela qual foram parar dentre os trabalhos sobre Don Quixote.

– Lorca é espanhol… – justificou-se o aluno.
– Ora, isto é óbvio! – tornou Angélica Elisa, com o tom de voz um tanto alterado. – Mas Lorca não foi o assunto proposto. E não creio que esses poemas vieram estar involuntariamente, estou certa?

Miguel vacilou. Depois de uma longa pausa, anuiu:

– Sim, você está certa.

– Então, dê-me um motivo para tanto. – A voz de Angélica Elisa retomara o tom natural.

– Bem, é que…

– Sim!… – ela insistiu.

– Veja bem: – Miguel avaliou as palavras – o fidalgo Quejana, para combater o tédio da vida de aldeia entrega-se à leitura dos livros de cavalarias. Ele se deixa contagiar pelo exercício da cavalaria andante. O mundo, cheio de injustiças e desajustados, precisa dele, espera por ele. E o cavaleiro surge com suas anacrônicas e decompostas armas, galopando desordenadamente atrás dos rebanhos, investindo contra moinhos, sofrendo danos e prejuízos. Os versos do Quixote carregam uma imensa melancolia. São tristes, dolorosos como de quem trouxesse o coração traspassado pela dor da eterna derrota e…

– E?…

– …isso me deixa mal…

Angélica Elisa não acreditava no que estava ouvindo. Instou para que o rapaz fosse mais claro:

– Que influência o perfil da personagem poderia ter no seu exercício de interpretação?

– A figura de Quixote me deprime. Sua recompensa é remota, impossível: o amor da apenas imaginada Dulcinéia…

– Mas por isto mesmo é mais alto, mais puro e cobiçável galardão – insistiu Angélica Elisa.

– O pior é que, apesar de o mundo estar cheio de injustiças, os culpados escapam às investidas de Quixote, como se fossem fantasmas. E ele segue assim, até que, um dia, quem se desencanta é ele, e não a sua inatingível Dulcinéia.

– Por favor! Quixote não pode ser visto apenas sob esta ótica. Ele era um sonhador, um visionário, um ser livre. Para ele não existiam limites, muralhas ou grilhões. Ele personificava o ideal de liberdade buscado por todo o ser humano… Não havia, para ele, o sonho impossível!

– E Dulcinéia?

– Tu mesmo disseste. Era o amor idealizado!

Angélica Elisa sentiu, ao mesmo tempo em que a conversação com Miguel estava tomando rumos que ela não planejara, que aquele estudante à sua frente, alguns anos mais jovem do que ela possuía um poder de sedução aliado à beleza que o tornavam irresistível. Era só o que lhe faltava, deixar-se seduzir por um adolescente que, em última instância, não cumprira o exercício de aula. Sabia, porém, que estava iludindo a si própria. Procurou retornar à razão daquela entrevista:

– O que se discute, agora, é o trabalho que pedi, e não a mera transcrição dos sonetos de Lorca.

Sem saber de onde retirara tamanha coragem, Miguel despejou, num só fôlego, o que lhe angustiava e oprimia o peito:

– Mas eles dizem tudo o que sinto, de quinze dias para cá. Os poemas dispensam qualquer interpretação. – Isto dizendo, ergueu-se de supetão e retirou-se da sala. Atônita, Angélica Elisa releu os versos que, pouco a pouco, ela teve a sensação, pareciam estar sendo gravados a fogo no seu coração. Guardou as folhas na pasta de couro.

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